FLORES INANIMADAS

A mesa da sala tinha as pernas carcomidas por uma praga de cupins que, no passado, também comeu parte da porta e as madeiras do fundo do guarda roupa. O forro do teto compunha-se de manchas que surgiram após uma briga de gatos no telhado. As telhas, afastadas uma das outras, deixaram goteiras que durante anos recebiam promessas de consertos. Também as janelas, com tinturas descascadas, tinham aquela aparência das coisas que ficam pelo meio do caminho, pela metade, água deixado no fundo do copo por alguém que se satisfez no primeiro gole e saiu apressado para a rua. Alguns azulejos, gastos pelo entra e sai de gente, parentes e convidados, complementavam o tom conveniente daquela casa de despreocupados.

Como pano de fundo de todo aquele ajustamento conveniente de coisas, uma senhora idosa e um homem enlouquecido pela força que a natureza canaliza na direção contrária ao rumo que tomam os espíritos violentos. Seres que não se encaixam no quebra-cabeça das peças que sustentam os princípios da originalidade e necessidade do mundo. Um rosto que esconde a face de uma sociedade traída. E, uma face que esconde o rosto de uma loucura aprisionada. Um homem moço, e louco. Uma mulher envelhecida, e magoada. A borboleta entrou pelo vitrô quebrado do banheiro, que um dia alguém prometeu consertar. O caixão do defunto estava na sala e as pessoas teciam seus comentários a respeito daquele homem, simplesmente, frio.

A morte o transformara na incapacidade perversa que amordaça a energia compulsiva dos animados. E a inanimidade, de sua loucura agora morta, era a mais efetiva preocupação daquele grupo de despreocupados abrigados naquela casa. E a borboleta, oscilando, entre um plano imaterial e a sutil realidade dos comovidos, pousou sobre o olhar do defunto. Sobre a cara da ausência do ser. No rosto decrépito do morto.

E foram todos os membros daquela congregação expansiva em uma comunhão ardilosa até o cemitério. A cova foi aberta com violentos golpes de enxada e picaretas. Um buraco disforme, uma sepultura, sepulcro para o aprisionamento da matéria biológica de um louco. E sua mãe envelhecida, à beira jogando os últimos grãos de terra. Com suas abanadas vacilantes, a borboleta aprofundou a suavidade de seu vôo compactuou da mesma sorte. Foi soterrada na frieldade da matéria bruta. Enterrada no metamorfosear dos sentimentos das pessoas que prestaram, ali, seus últimos testemunhos. Aquela gente que mora na casa carcomida pela natureza do tempo doloso, juntava toda a insanidade para construir a presença da visceral realidade fracionária da razão.

Todos retornaram para a casa dos despreocupados com seus espíritos mais aliviados. Depois, ainda vieram as flores. Algumas rosas, amarelas, vermelhas e até violetas. Não havia flores brancas. E quanto a mesa da cozinha, onde os pratos sujos ainda estavam desde o dia anterior ao velório, compunha uma expressão fatídica que bem realçavam a natureza das imposições de um destino profético e trágico. A sinistra composição das vidas que são levadas para a ausência do mundo, antes mesmo da interrupção do tráfego reluzente dos materiais inanimados. E a borboleta ainda retorna, entrando pelo mesmo vitrô, àquela casa que abriga a essência da abstração daquela gente que bem parece morta.