O leito

Sua mente estava alucinada e sua loucura se deliciava cada vez mais com isso. Porém tudo em sua volta era real, talvez o seu mundo habitual tivesse ficado para trás e ele entrava em um lugar e tempo desconhecido. O ilógico agora era agora mais concreto do que poderia supor. Não é possível dizer quanto tempo ficou naquele estado de negação, talvez horas, dias ou semanas.

Fazia tempo que estava em um lugar que não conhecia, um apartamento bonito e bem mobilhado. Deitado em uma cama, se perguntava como havia parado ali. Na cozinha sabia que uma moça bonita arrumava algo para ele comer. Dormia e comia, e quando despertava havia sempre uma bandeja de comida que a moça deixava. Devorava tudo avidamente e em algumas horas depois voltava a dormir. A noção das partes do dia vinha com os tipos de refeições que recebia. Não tentava fazer nem um esforço para se levantar de tão fraco que se sentia. Não sabia direito quem tinha sido, estava totalmente assustado e apesar de dormir tanto, acordava cada vez mais exaurido. Sonhava sempre com seres escuros sugando seu sangue, agulhas sendo enfiadas em seu corpo, sombras pretas conversando baixo. Parecia sentir podridão no ar, as sensações dos sonhos eram tão reais que acordava parecia sentir o cheiro impregnado no quarto. Era um odor acre, e a cada sonho ficava perturbado. Em alguns ele ouvia alguém pedindo que levantasse e fugisse, em outros via uma faca abrindo seu corpo, também com um cheiro podre.

Recobrava os sentidos e logo via a comida em sua cama, desesperadamente colocava dentro da boca. Sua fome era inesgotável, como se algo tivesse absorvendo suas energias. Ele olhava em volta e via por uma janela em frente à cama alguns arranha-céus, chamava a moça e ela não vinha, porém não fazia nada para se levantar, achava que estava fraco demais. Não lembrava muita coisa, e nem se preocupava em saber como sairia dali. Esperava a moça chegar, ela o ajudaria. Pois, afinal de contas, estava fraco e enfermo, talvez a moça fosse uma enfermeira. Voltava a dormir para sonhos em que sua vida era extraviada. Sua esperança era dormir e acordar em uma realidade que ele não saberia dizer qual era. O tempo que passava ali era estranho, ele ficava sempre do mesmo jeito, aceitando rendição ou tentando acreditar que era tudo ilusão. Confabulava por vez ou outra enquanto se alimentava, que sua mente enfraquecida por alguma doença – que certamente o devia ter posto ali – confundia suas ideias, a moça poderia realmente ser uma enfermeira, e os remédios que deveriam aplicar nele faziam todas as alucinações acontecerem, também os sonhos estranhos e a imagem do lugar que se encontrava. Em momentos achava que seu corpo deveria estar sedado em algum hospital. Entretanto, não eram raras as vezes que acordava suado e tremendo, seus sonhos eram cada vez intensos, o medo entrava em suas veias e o deixava ofegante. A falta de coragem não o fazia levantar da cama. Eram tão vívidos os momentos sonhando, o fazia acreditar que se levantasse da cama as criaturas que viam sugar suas energias estariam ali, esperando. E suas teorias de estar em algum leito de doente eram afastadas pelo terror que se apoderava dele.

Um dia a moça entrou no quarto, usando um vestido amarelo com flores vermelhas, que seguia justo até a cintura e depois corria solto até o joelho, acentuando a beleza do corpo da mulher. Seus cabelos castanhos claros caíam encaracolados por toda a costas, estava descalçada e não usava maquiagem nem jóias, mas trazia uma beleza simples e pura. Ela olhou para ele e sorriu, sentou-se na beirada da cama com uma bandeja de frutas.

- Não há nada que posso fazer para que saia da cama. Muitas vezes quando eles aparecem eu digo para você fugir, mas como pode fugir de si mesmo? Todos os seus sonhos são reais, as sombras que vê é somente criaturas nascidas de você, faço o máximo para mantê-lo vivo, e a única coisa que você poderia fazer era tentar se levantar da cama e enfrentar as criaturas que alimenta. Só que elas agora ganharam força e estão te sugando. Às vezes o egoísmo vem e te rouba um pouco de disposição, outras vezes sua falta de vontade deixa vir as sombras que te maltratam. Somos tudo resultado dos seus pensamentos que ganharam força. Fica ai sempre nesta cama, sem fazer nada, se afundando no seu próprio marasmo. Não luta e nem tenta sair do lugar. Acha que é um doente e que alguém tem que vir te salvar. Entretanto é você quem deveria se ajudar. Essa sua espera por melhora, essa sua indisposição para tentar, essa sua cegueira , nada deixa que veja a pessoa lamentosa que se tornou. Seus pensamentos são negativos. Só que seu tempo acabou e nós criamos vida, você não foi má pessoa, somente deixou se afundar em sua melancolia e não viu que tudo dependia de você. Gerou o seu mundo de dores e não fez nada para sair dele. Você se entregou e nos liberou, deixando-nos criar forças, puxamos uns aos outros. Eu sou o restinho da vida que você gostaria de ter. Mas estou me desfazendo. E ao mesmo tempo em que posso ser vida posso ser morte.

Nesse instante o quarto começou a ficar escuro, sussurros e sombras iam e vinham. A moça perdeu seus cabelos encaracolados, e no lugar um emaranhado cinza tomou lugar. O vestido amarelo foi se tornando um traje longo e preto, seu rosto começou a ter manchas por toda parte, e suas unhas cresceram negras. Ele sentiu seres rastejando em seu corpo, as sombras cada vez mais pertos e os sussurros cada vez mais fortes, viu coisas estranhas entrando no quarto, pareciam aves negras. Desesperado, olhou para a figura terrível que antes era a moça. O novo ser avançou em sua direção, colocou a mão acima do seu peito, na região do coração, e a pele começou a enegrecer. Sulcos negros se espalhavam e uma dor forte o fez gritar. Insetos começaram a invadir o quarto e tudo a sua volta ficou escuro. Não via nada além de terror. Os sussurros se intensificavam e diminuíam, e uma confusão de vozes ecoava, então foram cessando até ele ouvir somente a contagem de uma voz masculina. E num instante sua vida acabou.

- Um, dois, três. De novo! Um, dois, três. De novo! – O médico olhou para o monitor – Sem batimentos cardíacos. Pode anunciar.

- Hora da morte: 13h55min – disse uma enfermeira de cabelos encaracolados.

Brunna Cândida
Enviado por Brunna Cândida em 17/04/2015
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