BELZ

BELZ

Amarelinha, esconde-esconde, futebol com bola de meia, pular corda, correrias apostadas: “ganha um doce quem chegar primeiro ao portão do Zaca”.(O Zaca era o padeiro, que nunca negou ao vencedor o merecido prêmio).Queimada, polícia-ladrão e outras dezenas de jogos de rua foram a alegria da minha infância.

E, brincando de pique-esconde, encontrei Belz. Vi-o a pouca distância de mim no sombrio esconderijo onde me ocultava. Embora estivéssemos na obscuridade, eu soube não ser ele um dos companheiros de folguedos. O desconhecido mantinha-se imóvel, à minha observação.

“Quem é você?”- sussurrei.

Ele fez um ligeiro movimento voltando-se de frente para mim; naquele instante, uma vaga claridade o envolveu, e pude examinar melhor a estranha criatura. Sua aparência era fluida, conquanto fosse totalmente visível na sua extravagância. Parecia flutuar, ainda que se mantivesse no mesmo lugar onde eu o descobrira; sem sentir medo, explorei atentamente sua figura: tinha braços demasiado compridos, que pendiam ao longo do corpo; observei seus olhos vermelhos, suas orelhas longas e pontiagudas, seus dentes serrilhados. Possuía cabelos grossos e negros que lhe cobriam totalmente a cabeça juntando-se num nó à nuca. Tinha os pés fendidos, como os dos bodes. Num resumo era bastante assustador. Naquele momento minha curiosidade reprimia qualquer outro sentimento; portanto, repeti minha pergunta.

“Quem é você?”...

Os olhos vermelhos se estreitaram; os lábios não se moveram; estando ligeiramente entreabertos, deixavam ver os dentes serrilhados perfeitamente encaixados, quando sua resposta chegou aos meus ouvidos.

“ Sou quem sou... um gênio”...

Imediatamente recordei da lâmpada de Aladim, mas o que via à minha frente não era o simpático gênio da história.

Não me intimidei e voltei a interrogar.

“Como é seu nome?”

A criatura moveu-se levemente. Ergueu as mãos pálidas diante dos olhos, fitando os dedos estreitos como se os contasse.

“Poderia citar qualquer dos inúmeros nomes que tenho”- respondeu- deixando de novo tombar os braços. Escolho a apócope de um dos meus nomes, que muito me agrada...: BELZ.”

(Não sabia o que era apócope, e, por nada iria perder tempo pedindo explicações).

“Que faz aqui?” – perguntei às pressas, temendo que o pegador do jogo me descobrisse, pois ouvia sua voz bem perto do meu esconderijo.

“Vim brincar”- a criatura respondeu com simplicidade, como se desconhecesse que sua exótica aparência causaria espanto.

O pegador gritava meu nome; certamente todos os outros companheiros já estavam presos; eu poderia correr e salvá-los, antes que o pegador me descobrisse.

Assim pensando, sem tirar os olhos daquele que se denominava Belz, preparei-me para sair do esconderijo e prometi a meia voz.

“Vou chama-lo para outra brincadeira”.

Belz ergueu sua pálida mão diante de mim: “Não!!”,- repreendeu-me enfático - “Nunca me invoque!!” - pôs o dedo indicador sobre os lábios, num sinal de silêncio. Senti um ligeiro sopro no ouvido e Belz desapareceu.

Saí em desabalada corrida para salvar os companheiros.

E, em nossos folguedos, tivemos um novo participante, que apenas eu via; uma sombra volátil. Anunciava sua presença soprando, de leve, meu ouvido. Insinuando-se leve e incorpóreo, brincava de um jeito muito peculiar ignorando as regras do jogo. Divertia-se a seu modo: barrava alguém numa corrida, não para impedir que vencesse, pois nem sempre aquele era um dos favoritos a ganhar a disputa; impedia ou mudava o trajeto da bola no campo, indiferente ao resultado que isso levasse a jogada. Ignorava as metas. Parecia desconhecer o que era ganhar ou perder. Eu observava seus engenhos sem alcançar seu intento, embora desconfiasse que suas inventivas tivessem um propósito muito além da minha compreensão.

Eu tinha apenas 10 anos. Pesava-me guardar o segredo da presença de Belz entre nós Não podia, entretanto, reparti-lo. Imaginava quais seriam as consequências de confiá-lo a quem quer que fosse. Limitava-me, pois, a observar Belz e suas traquinadas. Incólume a outros olhares que não os meus, intangível, desmanchava os jogos de cartas, misturava as pedras nos tabuleiros, revirava os dados, (eu podia ver suas mãos esfumadas movendo-se, incontroláveis.) O ligeiro sopro no meu ouvido era o sinal de sua presença. Sem que se aproximasse de mim, eu sentia a vigilância de seus olhos estreitos; angustiado, relembrava seu veemente aviso naquela noite: “Nunca me invoque!” e seu pedido de silêncio.

Tínhamos problemas em casa: Ouvindo conversas de meus pais eu soube que brevemente nos mudaríamos dali, onde um projeto empreendido por uma equipe chefiada por meu pai não obtivera o sucesso esperado, razão pela qual meu pai teria que reinicia-lo em outra cidade.

A mudança entristecia-me: Perderia a convivência feliz compartilhada com muitos amigos; teria que habituar-me a uma nova escola e a novos companheiros.

“Não posso entender, – queixava-se meu pai – que as coisas não tenham dado certo! Um trabalho tão bem elaborado, cada detalhe minuciosamente posto à prova... Por mais que pense não encontro um só deslize nos encaminhamentos... E, assim de repente, tudo desmorona como um jogo de cartas”.

Minha mãe ouvia-o, pacientemente, tendo nas mãos seu bordado.

“Se quer saber, penso que esse fracasso foi definido não por falhas num projeto tão detalhadamente elaborado, mas por uma configuração que desde sempre o predestinou ao fracasso, assim como na trama do meu bordado, quando os pontos ainda que ordenados e perfeitos, algo inexplicável o desfigura, fazendo com que ele precise ser refeito”.

“Você quer que eu acredite que há uma interferência alheia ao nosso conhecimento modificando os resultados de nossas expectativas e determinações?”

“Sim, - respondeu mamãe – erguendo seus olhos sábios do trabalho – A constituição do nosso destino é como a urdidura de um bordado”.

Papai ergueu-se da cadeira, pensativo; sem fazer qualquer comentário, deixou a sala.

(Ouvindo aquele diálogo, sem saber o porquê, lembrei-me das inexplicáveis participações de Belz em nossos folguedos.)

Transferimo-nos para uma grande capital, onde os costumes muito diferiam daqueles da cidade interiorana que havíamos deixado.

E entre mudanças e outras experiências, eu próprio tornei-me um adolescente, sofrendo as alterações da puberdade: busca de identidade, de novas vivências e outros valores... Não mais brincadeiras de rua, não mais tardes de jogos infantis, não mais a presença e Belz e suas traquinices.

Os anos rolaram.

A árdua transcorrência da vida fez de mim um homem atento, reflexivo, observador. Minha formação acadêmica e seus conceitos conduzem-me à perspectiva comportamental: reconhecer, observar, ouvir. Deparo-me com dúvidas, interrogações, enigmas... E, diante do inexplicável, ocorrem-me lembranças, imagens da minha meninice. (E que pareça absurdo!!) Revejo Belz : obscuro, impalpável, ainda hoje interagindo, burlando, retardando expectativas, impedindo lances, apenas por brincadeira, indiferente às regras do jogo.

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 07/04/2016
Reeditado em 11/04/2016
Código do texto: T5597698
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.