Sra. D.

No pior dia de sua vida, Sra. D. saiu para pedalar, algo que não fazia há muito tempo e que ia ser bom para renovar o ar que entrava e saía de seus pulmões, um ar que estava velho, cansado e sem vontade de continuar pulsando o coração vermelho. Mas naquele dia, encarando o teto como se fosse a última vez que um teto a separava da estrela, pensou “é hora de pedalar”, e foi pedalar.

Sua bicicleta estava meio enferrujada, pois há tempos Sra. D. não usava. Mas logo nos primeiros movimentos, as duas foram recuperando a intimidade. A bicicleta começou a deixar sua timidez para trás e saiu mundo afora. Sra. D. sentiu o mundo dar boas-vindas quando ela se jogou dentro dele à toda velocidade, disposta a percorrer talvez a cidade inteira. Não: o estado inteiro. Não: o país.

Não havia sol no pior dia da vida da Sra. D. O céu estava escuro por causa das nuvens cinzentas, e ela não conseguia saber ao certo se o sol estava para nascer ou para se pôr. Não ficou esperando a resposta surgir, pois a felicidade não dependia da posição do sol, mas somente de sua posição na vida. E quando começou a subir a primeira ladeira, disposta a descer do ponto mais alto que pudesse com a velocidade mais alucinante, percebeu que sua posição na vida era aquela: no ponto que o risco a convidava para dançar.

Enquanto subia, sentiu as dores surgiram e irem embora rapidamente. E tudo porque ela sentia doerem, mas depois de esquecia, porque o importante era chegar ao fim. E fazia tempo que Sra. D. não se esquecia do que era enfrentar tantos obstáculos para se chegar ao fim: nos últimos anos, tinha sempre optado pelos caminhos mais fáceis, pelos atalhos, e tinha evitado grandes dificuldades. Mas naquele momento crucial, percebeu que evitar dificuldades era um grande erro, pois tinha esquecido como era lutar para superá-las.

Chegou por fim, ao ponto mais rápido. Estava na ponta de um penhasco quase sem fim. De tão alto, conseguia ver o país todo. Se olhasse para o norte e para o nordeste, conseguia ver explosões de alegria, dança, música, mas também muito trabalho e o orgulho que as pessoas tinham nos olhos por terem conseguido passar por tantos tempos difíceis. Se olhasse para o sudeste, via pessoas que também trabalhavam muito e se divertiam, mas ainda eram meio carrancudas, talvez pela sujeira nas ruas da cidade, pela sujeira do céu ou pela sujeira na tela da televisão, mas dentro deles, ainda havia um sangue vermelho correndo, e do qual eles precisavam se lembrar. O sul, ela mal conseguia ver, embora há muito tivesse vindo de lá. Mas no sul, conseguia enxergar resquícios do nordeste e do sudeste. Por fim, sentindo como eram as terras em volta, sentiu que ela própria era uma mistura de todos e ficou triste por só se dar conta tanto tempo depois.

No oeste… há, sim, no oeste havia o pôr-do-sol mais rubro e intenso que jamais vira. Ofuscava suas pupilas e faziam seu coração bater mais forte. Era para lá que ela precisava ir. Sra. D, então, preparou-se, em cima de sua bicicleta e acelerou com um impulso e pulou. Tentou chegar ao outro lado do penhasco, mas o salto não foi largo o suficiente. Entre um penhasco e outro, havia o grande buraco sem fim. E foi para lá que Sra. D., com sua bicicleta caiu.

Desceu tão rápido, que por um tempo, o escuro parecia projetar cores e formas em volta dela, e ela só podia ver cores que passavam totalmente alucinadas e misturadas, como se o mundo fosse um aglomerado de linhas coloridas que a conduziam a um inexorável fim rubro. Foi aí que percebeu o inexorável fim rubro que a esperava no fim do abismo: não sabia como, mas o pôr-do-sol, que antes estava ao leste e que ela tentara alcançar com o salto, estava logo ali, no fim do buraco que a engolia: era seu inexorável destino.

Sentindo o coração bombear mais rápido devido à empolgação do momento, seu cérebro começou a projetar imagens de um passado próximo, e ela começou a se lembrar das últimas vezes que seu coração acelerou de tal modo. Não fora no dia em que suas filhas nasceram, nem no dia de seu casamento, e muito menos no dia em que foi promovida a um altíssimo cargo em sua carreira: foi no dia em que, em meio a tantas trevas e tiros e bombas, ela tirou um tempo para dançar.

Ela era muito jovem. Situada em algum lugar escuro do qual já não lembrava, em alguma década passada que seu coração teve a honra de obscurecer, houve a dança. E Sra. D. lembrou-se exatamente na cronologia dos fatos: primeiro, ela esperava para dançar. Ela estava sentada em um lugar escuro, ao lado de muitas mulheres desconhecidas, todas com o mesmo brilho nos olhos. Todas esperavam pelo grande momento de sua vida. Então, a porta se abriu e aquele homem entrou. O rosto daquele homem nunca mais seria esquecido. Pois Sra. D. nunca havia dançado do jeito como dançou quando ele pegou sua mão delicadamente, levantou-a e a tirou da sala. Antes de sair, olhou para trás, e o sorriso de todas havia desaparecido, tal como o brilho dos olhos de cada uma. Certamente estavam querendo vir em meu lugar, pensou Sra. D.

Começaram a dançar de modo lento. Estava meio envergonhada, sem jeito, mas foi pegando as técnicas. Ele elogiou seus dentes. Ela sorriu e agradeceu. Ele pediu para que ela não mais parasse de sorrir, e assim, com os dentes à mostra durante toda a dança, mesmo quando os músculos de sua bochecha pediam para relaxarem, ela continuou cedendo ao pedido.

Após alguns minutos de dança, ela diminuiu um pouco a intensidade do sorriso, mas foi surpreendida. Então sorriu novamente. Ele possuía uma certa fixação por seu sorriso. Nunca soube o motivo. (Algum tempo depois, sonharia com aquela dança e chegaria à conclusão de que o homem era obcecado por seu sorriso porque lhe transmitia a felicidade que faltava em sua vida, e por isso alimentou-se por alguns instantes do sorriso da companheira de dança, mas ao acordar, Sra. D. esqueceria do sonho e da hipótese).

“Posso parar de sorrir?”, ela perguntou. Ele respondeu que sim. Mas ela já não conseguia. Ignorando a dor dos músculos faciais, o sorriso continuou aberto, para quem quisesse ver, enquanto ela dançava com ele, de um lado para o outro do salão parecendo muito feliz. Talvez estivesse. Nunca saberia. Logo se deu conta de que aprendera a dançar de um segundo para o outro. Seu corpo impulsivamente rodava com o homem, rodopiava sobre o solo e quebrantava aos poucos no canto escuro do salão, onde ninguém via nada e ele aproveitava para lhe dizer coisas, as quais ela não mais ouvia. Sentia supostos choques que controlavam seus membros e a faziam adotar aqueles movimentos aparentemente experientes, que dariam inveja a qualquer professora de dança, mas quem eram pura coincidência do destino.

Aquele companheiro de dança, que ela não sabia de onde vinha, possuía algum encanto diferente, pois mesmo quando não queria mais dançar e sorrir, não conseguia parar de fazer nenhuma das duas coisas. O corpo de Sra. D., outrora debruçado sobre os livros e sobre bombas, era agora um corpo que dançava e dançava, cada vez mais alheia ao tempo e ao espaço, desprendendo-se da realidade, das lembranças, dos amigos, da família, das ideias, das ideologias, dos planos, do mundo material, de tudo. Sua visão também cansou de dançar e abandonou. Era um corpo dançante no escuro.

Por fim, parou de dançar. Deflagrou um último movimento quando o primeiro raio de sol tocou sua face e ela, assim, acordou naquele lugar que já não sabia qual era, mas que a fez saber que estava em casa.

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Sra. D., descendo de bicicleta pelo abismo, enquanto essa lembrança desaparecia de sua mente, concluindo-se com uma imagem bonito de seu corpo em liberdade, dançando somente quando seu cérebro mandava, como o desfecho de um filme com final feliz.

Mas agora, Sra. D. descia o abismo cinzento, sentindo que tudo mudaria quando tocasse o pôr-do-sol que a esperava. Talvez fosse se reencontrar com mais momentos felizes como aqueles, e que pudesse ter igualmente esquecido. Talvez atirada a um plano sobre-humano em que pudesse produzir novos bons momentos. Não sabia. Mas tais sonhos e planos foram interrompidos quando ela sentiu uma sombra negra passar em frente ao pôr-do-sol do fim do túnel.

Eram criaturas negras que iam e voltavam ao longe, voando em círculos, como se esperassem que seu corpo por ali passasse para que a atacassem sem piedade e escrúpulos. Conforme ia se aproximando, seus corpos iam tomando forma e ela podia reconhecê-los: eram corvos, abutres e urubus. Tudo misturado. Mas objetivo era o mesmo.

Sra. D. tentou frear a bicicleta, mas não conseguia. Já não mais a bicicleta a controlava na queda, mas sim a gravidade. Sra. D. havia esquecido que nem tudo estava no seu controle enquanto pedalava. Pois a bicicleta lhe trazia uma segurança muito grande. E agora, Sra. D encarava seu erro: estava sendo conduzida pela força da gravidade, além de suas vontades, para uma equipe de aves que sabiam muito bem o que queriam e, portanto, voavam de modo estratégico à frente.

Então ela fechou os olhos. Tentou parar seu corpo em queda livre, tentou segurar-se em qualquer coisa mas estava sozinha. Não havia nada ou ninguém para se suportar as mãos de Sra. D. que tateavam o ar inutilmente. Sra. D. fechou os olhos, tentou mentalizar novamente o dia feliz de sua vida, em que sorrira e dançara sem conseguir parar, mas quando a lembrança retornou à mente, já não lhe transmitia conforto, e sim desespero. Por algum motivo, aquela memória da dança acompanhada do homem encantador não lhe parecia mais uma lembrança boa. Nem o homem lhe parecia mais encantador. Sentia como se, por trás daquela lembrança, por trás daquela dança, por trás daquele homem algo muito ruim e muito doloroso se escondesse. Algo que talvez não conseguisse lembrar porque era dor demais para recordar.

Algo muito ruim e doloroso talvez pudesse encontrar pelo caminho se os abutres não a deixassem chegar ao seu destino. Queria alcançar o pôr-do-sol, queria se pôr com ele. Queria sair de cena agarrada à estrela que a mantinha viva.

Mas a estrela ia embora.

E a estrela tentava atrasar o curso natural do tempo para que desse tempo de Sra. D. chegasse.

Mas a estrela ia embora contra a vontade.

E Sra. D. não iria alcançá-la.

E antes que conseguisse sequer passar pelos abutres no meio do caminho, seu corpo explodiu.

Dissolveu-se em infinitos fragmentos de memórias, ideias e sonhos cultivados em sua juventude, mas que desde então, foram trancafiados dentro de algum baú que, por sua vez, estava esquecido em algum lugar obscuro de seu coração. Essas memórias e ideias inflavam-se cada vez mais no indesejável paradeiro. Até explodirem todo seu corpo. De uma vez só. Como uma prisão sendo explodida por uma rebelião de prisioneiros injustiçados.

A bicicleta continuou seu curso sozinha, até passar pelos abutres e deixar de existir. Eles se contentaram em comer os componentes mais indigestos daquele meio de transporte sem dono.

E a estrela se pôs sem a Sra. D.