Nós e eu - Primeira parte

"Éramos a primeira família daquele lugar. Não me lembro como fomos parar ali, eu simplesmente nasci dentro daquela cabana."

Era uma cabana pequena porém confortável, quarto de todos, a sala e a cozinha eram tudo no mesmo comodo, único lugar separado era o banheiro, igualmente pequeno. Era o lar daquela família, eles eram a primeira família daquele lugar.

Porém nesse dia o lugar não era tão tranquilo, enquanto uma tempestade batia nas janelas fechadas, um choro agudo ecoava do lado de dentro.

Três crianças discutiam o que fazer quanto aquele choro:

- Eu realmente já tentei de tudo, simplesmente não para de chorar... - Disse Rafael, era o mais novo deles, tirando o bebê.

Gabi olhava curiosa para o berço:

- É o barulho com certeza. - Disse certa a garota, a irmã do meio.

O mais velho olhava pela janela, mas nada via, a tempestade era forte demais, sua densidade escondia qualquer coisa do lado de fora:

- Nosso pai disse para não sairmos até que ele volte. - Disse João, esse já tinha idade o suficiente, seguia todas as ordens de seu pai e não questionava nada que fosse.

- Temos que dar um nome pro bebê. - Disse Gabi sentindo amor e empatia.

- Já tem um nome. - Disse João, sendo grosso com a irmã.

Todos olharam João confusos:

- E qual é o nome? - Perguntou Rafael curioso, pegando no colo.

- Eu não sei também... - Disse João.

O tempo passou porém o pai deles não retornou, a tempestade durou muitos dias e tudo que as crianças conheciam eram aquela cabana, a criança eventualmente cessou o choro, Rafael passava a maior parte do tempo cuidando, Gabi alternava os turnos para cuidar também, João apenas fitava-os de longe... Começava a sentir o peso da responsabilidade logo cedo:

- Precisamos dar um jeito em tudo enquanto nosso pai está fora. - Dizia João para os irmãos, mas Gabi percebia que o irmão mais velho estava repetindo aquilo para ele mesmo.

O tempo passou ligeiro e logo Rafael começou chamar a criança de Lucy:

- Eu senti que esse é o nome dela. - Disse Rafael. - Combina com seus olhinhos e sua curiosidade aguda!

Gabi adorou e logo começou a chama-la de Lucy também, não sabia da onde Rafael havia tirado aquele nome, mas era um belo nome.

João insistia em chama-la de criança:

- Não é esse o nome dela. - Dizia.

Logo Lucy deu seus primeiros passos, disse suas primeiras palavras, o tempo passava e as crianças não iam longe, viviam da plantação que João cuidava do jardim de casa, tinham de tudo em volta da cabana, poderiam viver muito bem ali, mas a curiosidade logo atingiu os pequenos, principalmente Lucy que tinha esse dom marcante:

- O que aconteceu com nosso pai? - Perguntava Rafael, Gabi fechava os olhos e deixava João cuidar de tudo, mas o irmão simplesmente dizia.

- Confie no nosso pai Rafael... Ele não ia nos deixar aqui...

Lucy assistia de longe essas conversas, curiosa sobre tudo que diziam.

O tempo passava enquanto João arava a terra, colhia as frutas, ensinava os irmãos todo tipo de coisa, Lucy logo aprendeu a ler, era esperta pra sua idade, um laço que os irmãos tinham em comum, a preocupação com a irmãzinha mais nova.

Rafael saía com ela e andavam juntos até o limite do quintal deles, onde uma cerca de madeira mal feita bloqueava o caminho, a vista era linda, jardins e florestas até o limite de sua visão, o céu azul, sempre limpo, sempre dia:

- É tão bonito... - Dizia Lucy com sua vozinha doce.

- Sim...

- Pena que nosso pai é tão bravo. - Dizia emburrada com as bochechas cheia. - Queria tanto passear por ai.

Lucy se referia a João como pai, nada anormal tendo em vista que João criava os irmãos com tanto esforço, os irmãos cansaram de corrigi-la e de certo modo isso afetava o irmão mais velho positivamente.

Voltavam vez ou outra para os limites da cerca, mas respeitavam a decisão do irmão mais velho e não cruzavam as fronteiras impostas.

João já criava barba, uma barba escura como seus cabelos cumpridos, marcas de preocupação atingiam o irmão mais velho vendo todos crescerem sob seu manto:

- Vamos orar. - Dizia, os irmãos dava as mãos na mesa de jantar, fechavam os olhos, Lucy ficava sempre confusa.

Um dia todos estavam brincando enquanto João estava dormindo, exausto de cansaço.

Rafael, Gabi e Lucy corriam em volta da cabana, com intuito de pegar um o outro, uma brincadeira que inventaram.

Era a vez de Lucy correr dos dois irmãos, Lucy correu em volta da cabana enquanto Gabi e Rafael iam atrás, todos rindo muito, o dia estava muito claro e quente, Gabi e Rafael seguiam o riso escandaloso da irmã mais nova, até que cessou e ouviram um baque.

Apressaram o passo, Lucy estava caída na grama:

- Ei o que houve? - Perguntou Rafael sempre cuidadoso e carinhoso.

- Não sei... To meio fraca... - Respondeu Lucy.

Gabi se abaixou e com as mãos checou a temperatura da irmã, estava febril:

- Vem comigo. - Gabi pegou Lucy pelas mãos e entraram juntas na cabana e se dirigiram até o banheiro.

João acordou e Rafael explicou a situação, logo Gabi saiu sozinha do banheiro:

- Ela está crescendo rapazes, vai passar por um momento difícil, é normal. - Disse Gabi fitando João.

- Vai ser complicado... - Disse Rafael.

Os irmãos se entreolharam:

- Vou falar com ela. - Disse João.

Gabi ergueu as sobrancelhas, nunca havia visto Lucy a sós com ele, mas concordou.

João entrou no banheiro e Lucy estava sentada no chão gelado:

- Ei você está bem? - Perguntou sério.

Lucy tinha água nos olhos:

- Sinto dor... Mas vou ficar bem... - A garota deu um riso de canto de boca.

João sentou ao lado da garota:

- Sua curiosidade está te deixando doente. - Disse João sorrindo pela primeira vez em semanas, a irmã adorou vê-lo assim e se animou.

- Sou curiosa mesmo e um dia vou atravessar aquela cerca! - Riu junto com o irmão.

Ele deu um tapinha nas costas dela e voltaram para a sala.

A febre passou, Lucy cresceu e se tornava uma bela moça, a mais bela de todos os irmãos.

O cabelo cumprido marcava seu rosto delicado, sempre um sorriso sincero no rosto, ajudava João em muitas tarefas, passavam mais tempo juntos, quando Gabi adoeceu de saudade, foi Lucy que cuidou da irmã, assim como ela havia cuidado quando estava virando uma moça:

- Você não acredita no que eu vi. - Disse empolgada para Gabi.

Gabi deitada prestou atenção nas palavras da irmã mais nova:

- Vi um brilho no céu, passou ligeiro, de ponta a ponta! - Lucy fitava o céu e ia escondida até a cerca diversas vezes.

Gabi sorriu, sabia o que estava por vim.

No jantar enquanto todos conversavam não era raro os irmãos sentirem o olhar analítico de João, que cansado olhava cuidadosamente para o rosto dos irmãos, que envelheciam dia após dia:

- Eu amo todos vocês. - Disse.

Todos sorriram, Rafael comia esfomeado e abriu um sorriso grande, só não maior que o de Lucy que respondeu ligeira:

- Eu que amo todos vocês. - Sorria.

Certa manhã todos acordaram com um som diferente, era cedo demais para qualquer som, Rafael e Gabi se entreolharam confusos, checaram e perceberam que Lucy não estava na cama.

Levantaram e ao sair da cabana perceberam que Lucy emitia esse som diferente, organizado, o som saia de um objeto de madeira que a moça levava a boca e assoprava:

- O que é isso? - Perguntaram os irmãos curiosos.

- É música... Eu acho. - Disse Lucy assoprando o objeto cilíndrico.

Os irmãos sentaram na grama em volta de Lucy e ficaram muito tempo ali, ouvindo-a assoprar o belo objeto que emitia um som nunca ouvido por nenhum deles.

Porém, a paz não durou a eternidade.

Lucy visitava demais a cerca, isso começou a preocupar João, que se tornava cada vez mais chato quanto aos limites.

Certo dia depois de pegar Lucy pelá milésima vez na cerca sozinha, João tomou uma atitude drástica.

Caminhou sozinho até a cerca e durante horas e um trabalho árduo, recuou-a até onde sua visão atingia, trazendo a cerca para perto da cabana.

Isso revoltou Lucy:

- Eu não posso cruzar a cerca, eu tenho limite aqui e você aumenta esse limite? - Perguntou indignada na mesa de jantar.

Porém João permanecia calado, comendo, sem responder a irmã mais nova, que se irritava:

- Por que você age dessa forma sempre que alguém te confronta? - Dizia irritada Lucy saindo da cabana, Rafael a seguia e se certificava de que não faria besteira.

- Por que você age assim com ela? - Dizia Gabi chateada enquanto os dois estavam do lado de fora.

- É pro bem dela... - Respondia João.

O peso da vida dos irmãos estava em suas costas.

Ele sabia que o pai deles voltaria, e caberia a ele as explicações sobre seus irmãos.

Lucy sempre voltava atrás, não se permitia brigar com nenhum irmão, deveriam ser unidos, eram apenas os quatro, e há tanto tempo...

Se forçava a obedecer João, ele era o mais velho, ele estava certo.

Gabi caminhou até a moça:

- Vem comigo, quero te contar uma coisa. - Disse séria, Gabi nunca ficava séria mas quando ficava era melhor obedecer a mulher.

Lucy seguiu-a até atrás da cabana, onde sentaram e fitaram o céu, juntas:

- Vou te contar algo. - Disse séria olhando nos olhos brilhantes de Lucy, que concordou com a cabeça.

- Certamente você sabe que João não é seu pai, nem de nenhum de nós, por um tempo você o chamava assim. - Disse.

- Eu sei, mas eu sinto que ele não é meu pai, mas é como se fosse... Ele criou nós todos... - Disse Lucy séria também.

- Sim... Nosso pai saiu para fazer algo que ele deveria fazer, todos nós entendemos e todos nós sabemos que ele vai voltar. - Disse Gabi fitando o horizonte. - João é responsável por nós.

Lucy concordou com a cabeça:

- Lucy... Temos que confiar no João mais do que qualquer coisa... - Disse enchendo os olhos de lágrimas.

Lucy não entendeu e deixou claro no seu olhar:

- João foi o único que conheceu nosso pai, antes dele partir... - Disse Gabi.

Ficaram ali muito tempo em silêncio, abraçadas.

Na manhã seguinte, Gabi levantou, o dia estava nublado pela primeira vez na fazenda.

Olhou em volta e saiu afoita da cabana, rodando todo os limites da fazenda.

Lucy não estava mais lá.

Pedro Kakaz
Enviado por Pedro Kakaz em 20/05/2016
Código do texto: T5641667
Classificação de conteúdo: seguro