ALEIXOS

Cada ser é a percepção de um fragmento

da Consciência existente desde o princípio dos tempos.

Fragmentos incompletos, imperfeitos,

em um mundo perfeito, cada qual com seus fantasmas

e sua luta interna, em busca do todo.

w.p.

ALEIXOS

Pra ser franco nunca fui o tipo amigável. Reconheço ter sido uma pessoa difícil de se lidar. Firme em minhas posições filosóficas, intolerante a outras formas de pensar. Como muitos já me definiram, um sujeito esquisito, insuportável; um chato mesmo.

Isso, antes daquele insólito episódio, que mudou radicalmente minha maneira de pensar. Influenciou e me fez ver a vida de forma diferente. Um aprendizado que valeu uma vida.

Além de minha atividade profissional normal, exerço outra atividade, a pretexto de um passatempo, mas que no fundo também servia de fachada para o comércio ilegal de obras de arte antigas. Meu sonho, assim como o de todos que eu conhecia e fazia meu comércio escuso, sempre foi encontrar a cidade perdida dos Alantos, um povo do qual pouco se sabe. Os poucos que passaram pela cidade deles nada puderam trazer, e ao que parece, não diziam coisa com coisa. As informações eram sempre contraditórias. O que se pode compilar era que essa cidade era revestida de ouro e os templos eram forrados de diamantes. Um sonho. Uma lenda.

Sempre em busca de artefatos indígenas antigos, ou de artigos vindos do Peru, mudei-me para uma região no interior do país, na região amazônica. As histórias sobre Alantos eram freqüentes, às vezes com o nome de El Dourado Perdido, Atlântida Amazônica, e muitos outros. Tantas histórias que a maioria ouvia e repassava sem se dar conta dos detalhes. Eu sempre procurava filtrar esses detalhes. Esperava encontrar ouro e riquezas, viver como um nababo pro resto da vida.

Havia saído de casa pouco antes das onze da manhã, indo até um bar na esquina, enquanto esperava Etelvina terminar o almoço. Sempre fazia isso aos domingos, apenas uma cerveja, que às vezes deixava pela metade. Por ali conversava com conhecidos, procurando saber as novidades na cidade, uma piada aqui, uma notícia ruim dali... Naquele dia, um rapaz, sentado na calçada, recostado na parede do bar, terminando de comer um pão com mortadela e bebendo um refrigerante. Um maltrapilho que de início não dei muita atenção. Com o olhar distante, como se estivesse alheio ao que o cerca. Depois do primeiro copo de minha cerveja, sem ninguém por ali, a não ser o dono do bar que naquele dia parecia não estar muito pra papo, enchi meu copo novamente e com ele fui até a porta, observar o movimento da rua. Ali o movimento costumeiro, o mesmo vendedor de verduras, empurrando sua bicicleta, indo de casa em casa, fornecendo sua mercadoria, o casal com suas duas filhas, vindo da feira, sempre no mesmo horário, aquela moça da rua de baixo, vindo pro centro, toda arrumada... Quase que mecanicamente puxei conversa com o rapaz.

- Essa daí sempre passa a noite na balada...

Ele olha pra mim por um instante, sem demonstrar muito interesse, e volta a olhar em frente, toma um gole do refrigerante e diz:

- Mundana!

Achei engraçado alguém naquelas condições criticar os atos dos outros. Mas entendi o que queria dizer. Observei-o por um momento, suas roupas um pouco sujas, surradas, chinelo de dedo, pés sujos, pareciam calejados de tanto andar. Não parecia ter condições nem pra comprar aquele refrigerante que estava tomando. Certamente teria sido ofertado pelo dono bar. Gentilmente eu disse:

- Estou tomando cerveja, aceita um copo aí?

- Eu não bebo – olha pra mim – Já bebi... Muito... Hoje não mais.

Aquela resposta surpreendeu-me. Mas não o critiquei. Ele continuou:

- Não digo que não volte a colocar álcool em minha boca. Apenas que isso não me atrai mais.

- Refrigerante, segundo dizem, também não é lá muito saudável.

- Verdade. Não me proíbo de tudo. Algum deslize sempre vou cometer. Nem tudo deve ser a ferro e fogo. Seria uma prisão e não liberdade de viver. Nem muito nem pouco... Apenas o tanto certo pra viver harmonicamente...

Esperei que ele concluísse, mas ele volta a olhar em frente, meio perdido. Apenas com aquelas palavras, pude perceber que ele não era de todo um ignorante. Expressava-se corretamente, aparentando apenas estar um pouco confuso. Por sua aparência conclui que certamente havia passado por um estresse grande.

- Nunca o vi por aqui. Você me parece exausto, deve ter feito uma caminhada longa.

- É... Caminhada longa... Digamos que demorei mas consegui encontrar meu caminho. Não há vitória sem luta. A satisfação é a recompensa, o descanso, a compreensão.

- Entendi – disse eu sem muita certeza – A batalha diária pela vida...

Ele olha pra mim novamente.

- É por aí... Mais ou menos isso...

- Mas você parece-me cansado fisicamente. De onde você é?

- Sou de todo lugar. O cansaço físico não me dói mais. Pareço arredio, absorto... Estou apenas saboreando o conhecimento de mim mesmo. Não sabia que eu era tão complexo, tão grande... Como ser!

- Feliz de você! Eu, às vezes, me pergunto qual o sentido de tudo isso.

- Porque você busca a resposta na complexidade, em algo difícil, que precisa de um esforço descomunal, estudos e tudo mais, quando você pode encontrá-la na simplicidade, ao alcance de qualquer um. Simples assim... Basta que se desarme.

- E você descobriu isso, assim, de uma hora pra outra?

- Digamos que fui forçado a isso. Às vezes nos tornamos tão arrogantes diante de nossa própria existência, gastando energia desnecessária, que nos desviamos do rumo certo.

- Entendi... – eu disse, novamente sem entender direito.

Ele percebeu minha dúvida, e tinha certeza dela. Sorri e continua:

- Recentemente passei por um lugar que seria o desejo de muitos, onde riqueza material não há tanta importância – ele me olha e minha expressão de incrédulo continua estampado em meu rosto – Um lugar físico, uma cidade, ricamente decorada.

Aquela última frase, despertou-me algum interesse.

- Uma cidade?

- Sim. Alantos. Uma cidade isolada, de difícil acesso, no meio da selva amazônica – diz com o olhar distante, mas com emoção, e um leve sorriso – Um lugar que de início não percebi sua importância e sua riqueza, mas... foi se mostrando aos poucos.

- E onde fica esse lugar? Muito longe daqui?

Ele pensa por um instante. Começava a entender mais ou menos suas palavras, mas apesar de certa coerência no que dizia, me parecia meio confuso, como tantos outros relatos sobre aquele local. Ele responde:

- Não sei dizer se longe ou perto. Depende do ponto de vista.

- Gostaria de conhecer tal lugar. Pra que lado fica?

- Pro norte. Cinco ou seis dias de caminhada, não sei bem...

- Pela estrada do garimpo?

- Não sei de garimpo nenhum. Seguindo pela estrada ao norte... Uma clareira... Uma pedra em formato de cachorro... Saindo da estrada, ao leste da clareira, seguindo por uma velha trilha.

- Acho que sei onde é. Por uma ponte quebrada.

- Isso. Uma ponte bem frágil, pela qual só é possível passar a pé.

Essa direção e descrição inicial, eu não havia ouvido em nenhum outro relato.

- Fica muito longe dali? – insisti.

- Uma bela caminhada dali... Aliás, ali começa tudo... E eu nem havia me dado conta disso...

Ele volta a olhar em frente, olhar meio perdido, sem perder o leve sorriso.

- Sempre naquela direção? Alguma referência sobre como chegar lã?

- Sempre seguindo a trilha. Tem que desejar chegar lá...

- Me fale sobre a cidade. Como é lá?

Ele respira fundo. Olha pra garrafa vazia de refrigerante.

- Quer outro refrigerante? Eu pago pra você – adiantei-me em agradá-lo.

Ele abre o sorriso.

- Não, obrigado. Preciso continuar minha caminhada – diz enquanto se levanta.

- Mas nem terminamos aqui. O sol tá quente, melhor descansar mais um pouco.

- O sol não é nada. Minha parada aqui já alcançou seu objetivo. Preciso continuar.

Ele levanta-se segue até o balcão, retira do um pequeno saquinho do bolso, soltando a amarra que o fechava. Parecia cheio. Retira um cristal de dentro, olha pra ele e o recoloca lá dentro, retirando uma pepita de ouro. Confere e diz ao dono do bar:

- Posso pagar com isso? Estou sem dinheiro.

O dono do bar pega a pepita e a observa. Já fora garimpeiro e sabia o valor daquele metal.

- Claro. É bem mais do que deve. Não quer mais nada?

Como resposta o estranho aponta pra um pacote de biscoitos caseiro. Ele o recebe e sai sem dizer mais nada, seguindo em direção à saída sul da cidade.

Eu fiquei por ali, pensativo, observando aquela figura se distanciando. Pouco depois percebo meu copo vazio. Penso em me servir da garrafa sobre o balcão mas já não estava mais tão gelada. Deixo prá lá e volto pra casa. O almoço já deveria estar pronto.

Passei a tarde toda pensado sobre o relato daquele andarilho, juntando com outras informações recebidas aqui e ali, tentando montar o quebra-cabeça. Disse a Etelvina que sairia no dia seguinte bem cedo, pra resolver alguns assuntos importantes, sem saber a hora de minha volta, e se voltaria no mesmo dia. Pedi que não se preocupasse. Em outras ocasiões sempre seguia-se uma discussão sobre aonde ia, com quem, mas daquela vez ela concordou sem contestar.

Por volta das oito da manhã do dia seguinte paro o carro assim que alcanço a clareira descrita pelo andarilho. Vejo à esquerda a pedra em forma de cachorro. Estava no lugar certo. Saindo da estrada, sigo pela clareira, pro leste, por cerca de trezentos metros, até onde foi possível seguir de carro. Desço, pego uma mochila no porta-malas, e sigo por uma trilha estreita. Já me aventurara por ali, uma outra vez, mas nunca fora além da ponte descrita pelo andarilho.

Cerca de três horas de caminhada depois alcanço uma clareira, num terreno rochoso na qual está a ponte, ou o que restou dela. Quando em uso, era estreita, usada por pequenas carroças e animais montados. Como a trilha não era usada há muito tempo, já não era feito mais sua manutenção, e havia caído, restando apenas a cabeceira de suporte de um lado e outro. Próximo dali fora colocado um tronco de jatobá, servindo como uma pinguela, unindo os dois lados, num vão de seis metros, as duas paredes rochosas. Uma vara, à altura do peito, servia como apoio para quem o atravessasse. No fundo passava o rio que devido à parte estreita, formava a corredeira, da qual se ouvia o rugido das águas batendo nas pedras, e assim seguia por cerda de um quilômetro, para o leste. Faria uma pausa para descanso do outro lado, por meia hora antes de seguir em frente; aproveitaria pra comer algo também.

Eu analiso a altura, a correnteza forte quatro metros abaixo, batendo nas pedras, entre os paredões de rocha, sem pontos de escalada. Seguia assim por cerca de um quilômetro rio abaixo. Apóio-me no travessão e inicio a travessia. Bem no meio, meu corpo pende pro lado e seguro forte no travessão, mas este não resiste ao meu peso e se quebra ao meio, fazendo com que eu perdesse o equilíbrio. Ainda tento me segurar na tora de jatobá, mas também não consigo, caindo direto nas corredeiras. Ao voltar à tona, consigo me desviar por pouco da primeira rocha. A mochila em minhas costas estava dificultando meus movimentos, pensei que seria melhor usá-la como escudo, evitando um possível impacto; e assim fiz. Por um longo e interminável tempo, fui carregado pela correnteza, conseguia me desviar de algumas rochas e de outras usava a mochila pra reduzir o choque. Próximo do fim das corredeiras não consegui evitar que fosse de encontro a uma rocha, usando a mochila para me proteger, mas não conseguindo segurá-la, esta escapa de minhas mãos, perdendo-se naquela turbulência. Sou carregado por mais um pouco quando finalmente os paredões se alargam e diminuem a altura até sumirem por completo. A força das águas diminui e consigo nadar pra longe do centro, permitindo com que eu escolhesse um local entre a vegetação que pendia sobre as águas. Logo à frente, à esquerda, um trecho sem galhos, onde era possível passar com certa facilidade. Saio por ali, distanciando-me um pouco e recostando-me em uma árvore, um tanto exausto. Devo ter ficado sentado ali por cerca de meia hora, procurando recompor minhas forças.

Pensei em atravessar o rio e retornar ao carro, mas algo me impulsiona a continuar. Em seguida avanço ao interior da mata. Cem metros dali encontro um riacho e logo imaginei que iria desaguar no rio logo à frente. Caminho à sua margem contrário ao sentido das águas.

Uma hora depois a vegetação se torna rarefeita, e pude observar um grande lago formado em uma depressão no solo. Ao fundo, do outro lado, uma cachoeira que a abastecia. À esquerda do lago construções rústicas e uma que se destacava das demais, próximo à margem do lago. Segui em sua direção.

Pouco depois pude entrar pela aldeia. Parecia deserta. Eram pequenos casebres feitos de rocha cortada a uma espessura de vinte centímetros. O teto feito do mesmo material, a uma altura de dois metros. Todos bem próximos um dos outros e iguais, porém com leve diferença na tonalidade das cores. À frente de cada um deles, o que antes era uma vegetação, que pareciam ser roseiras, com as folhas já secas, sem cuidados. Aproximei-me de um deles e constatei que o corte das rochas era uniforme. Sem pintura e sem acabamentos, mas perfeitos. Segui em frente, passando pelos casebres abandonados, tentando me aproximar da única estrutura diferente naquele local. Não demora muito e chego a um largo, do que seria uma praça, formando um semicírculo com raio de cinquenta metros, à margem do lago. Todas as ruas do vilarejo convergem pra este lugar. Próximo à água, uma construção estranha, feita de pequenas pedras, e de sua estrutura, podia-se sentir sua aura. Uma energia emanava dela, ainda que de forma falha. À sua frente, do outro lado da praça, em um dos casebres saia fumaça de uma chaminé. À frente dele o jardim era bem cuidado. Flores de variadas cores em um lado e outro da entrada. Sinal que alguém habitava aquele local. Fui até o meio da praça, tentando me decidir o que fazer primeiro. Optei por conhecer o morador daquele local. Dou três passos e ouço à minhas costas:

- Olá!!

Quando me viro, vejo uma figura parada à frente do prédio de pequenas pedras. Estatura mediana, um pouco magro, rosto fino, olhos escuros, sobrancelhas arqueadas, pele morena, dedos longos. Vestia uma bata de linho, com o comprimento pouco acima dos tornozelos.

- Seja bem vindo! – Continua ele – Parece um pouco cansado. Deve estar faminto.

- Bom dia – respondo – Confesso estar um pouco exausto. Não esperava encontrar alguém por aqui.

- Oh! Verdade. Isso aqui tem estado um pouco deserto. São as reviravoltas do tempo. Até há pouco tempo, isso aqui era bem movimentado.

Olho em volta tentando imaginar pessoas andando por ali. Ele sorri. Eu continuo:

- Aquela casa parece habitada. É a sua?

- Sim. Tenho ocupado aquele espaço. Pressenti que hoje teria visitas e preparei algo pra comermos.

- Como assim? Como sabia que eu viria?

- Há muitas coisas que você não sabe sobre esse local. Mas terei prazer em lhe falar sobre ele.

- Gostaria muito.

- Depois. Antes vamos fazer nossa refeição.

- Pra dizer a verdade, estou morto de fome.

Ele sorri. Pega-me pelo braço, como se eu precisasse de ajuda pra ser conduzido. Porém não a rejeito. Seguimos em direção ao que até aquele momento pensava ser o único casebre habitado naquele local.

A casa era simples por dentro, apenas dois cômodos, sem portas para fechar; apenas o vão. Na mesma sala, uma cama dum lado, e do outro um banco de pedra encostado na parede, uma mesa baixa próxima dele. E outro cômodo era a cozinha, um fogão rústico, com uma saída aos fundos pelo qual se podia ver o quintal, com alguns canteiros de temperos e logo depois deles canteiros de legumes. Ele coloca-me sentado na sala enquanto vai à cozinha e traz duas tigelas com sopa de legumes e duas colheres de madeira. Até aquele dia detestava sopa, mas aquela foi a melhor refeição de minha vida. Terminei a minha e ele ainda estava na metade da dele. Ele sorri, pega minha tigela, vai à cozinha e traz outra igual. Desta vez procuro sorvê-la, sentindo melhor o sabor, como num ritual.

- Que delícia de sopa! Eu agradeço imensamente sua gentileza.

Ele sorri pra mim. Pega as tigelas vazias e leva pra cozinha retornando pouco depois. Novamente eu interrompo aquele silêncio:

- Ainda não me disse seu nome...

- Já me chamaram de muitos nomes... O guia, o mestre... até de monge. Por último me chamavam de Guardião.

- Guardião? Porque deste nome?

- É que sou o guardião deste local. Principalmente do templo. É de minha responsabilidade fazer com que não seja destruído.

- Templo é aquela edificação à margem do lago?

Ele responde afirmativamente com um movimento da cabeça.

- E o que é aquele templo?

- É o coração deste local. O que mantém toda estas estruturas de pé. Porém é um tanto frágil, necessitando de reparos constantemente.

- Percebi que ela não é feita do mesmo material das casas da vila.

- As casas são feitas de rocha bruta, embora lapidadas, diferentemente do templo. Mais tarde o levarei lá e poderá entender melhor.

- E essa vila? Quem mais sabe da existência dela? Como ninguém soube dela antes? Se só você vive aqui, pra que tantas casas?

- Aqui nem sempre foi tão deserto assim – diz ele, sorrindo – Até há pouco era uma aldeia bem movimentada. Todos viviam em harmonia e todos tinham as mesmas responsabilidades e os mesmos direitos. Em total confiança.

- Difícil imaginar um local assim.

- O que nos mantém unidos é a força do templo. Por algum motivo a aura do templo foi perdendo a intensidade, causando fissuras em sua estrutura. Com isso os integrantes começaram a sair, um a um, até que ficasse apenas eu.

- E porque você também não foi?

- Como disse antes, é minha responsabilidade manter o templo funcionando. E farei isso enquanto minhas forças permitirem. Aquele templo é a razão de minha existência. Não me perdoaria se o abandonasse.

- Humm... Admiro sua força!

- Descanse um pouco. Vou cuidar dos canteiros enquanto isso. Em seguida o levo até o templo.

- Preciso voltar. Não posso me demorar muito.

- Voltar? Agora?

- Sim. Gostaria de chegar em casa antes do anoitecer.

- Melhor descansar por hoje. É uma longa caminhada. Afinal você não veio até aqui por nada, não é mesmo?

- Como assim? Na verdade cheguei aqui por acaso. Eu estava em busca...

- De tesouros – completou ele – Eu sei. É o que todos buscam por aqui.

- Nesses casebres abandonados não há muitas riquezas.

- Realmente. Aqui não há luxo nem riqueza. Este tipo de coisa está bem longe daqui, pro outro lado.

- Sabe onde está? Era pra lá que eu estava tentando ir.

- Não posso lhe indicar tal lugar. Pensei que tivesse vindo em busca de riquezas.

- Entendo cada vez menos dessa conversa.

- As maiores riquezas não estão em pedras ou minérios preciosos. Estão ao alcance de qualquer pessoa. Apenas não sabem como alcançá-las.

- Se não se importa com ouro, podia pelo menos me indicar onde posso encontrá-lo.

- As pessoas que abandonaram este local foram pra lá. Se deixaram levar pela ganância, luxúria, egoísmo...

- Pois pra mim o ouro me traria muita alegria! – contestei.

- Não posso impedir de alcançá-lo. Este é um dilema entre você e sua consciência. Mas já que está aqui poderia me ajudar com o templo. Tenho andado meio adoentado, precisando d’alguma ajuda. Esperava que fizesse isso por mim.

- Depois que eu o ajudar, você indica o caminho pra Alantos?

Ele me olha por um momento antes de responder.

- Gostaria de conhecer Alantos?

- Sim. A cidade dourada, com suas riquezas. Sempre sonhei descobri-la. Foi pra isso que me embrenhei nesta floresta.

Ele me olha por um instante e sorri.

- Talvez eu faça isso. Vai me ajudar com o templo?

O Guardião me recebera tão bem em sua casa. E depois não saberia e conseguiria achar o caminho até meu carro. Eu estava um pouco exausto e não custava nada ajudar. Ele me oferece sua cama pra que eu repouse um pouco. Às três horas da tarde, me chamaria e iríamos ao templo, onde me explicaria do que precisava.

Caí naquela cama feito uma pedra. Estava cansado.

Mais tarde sou acordado por ele. Sentei-me na cama, já bem mais disposto, revigorado. Não sentia mais o cansaço de antes, os músculos já não doíam mais. Não sabia explicar como me recuperara tão rápido. Talvez pela sopa, ou alguma coisa colocado nela; também percebi que aquele local me fazia bem.

- Que horas são? – perguntei.

- Nunca me guiei pelo contador de tempo de vocês. Mas segundo seu entendimento, já deve passar das quatro horas.

- Dormi tanto assim?

- Tentei acordá-lo antes, mas você dormia profundamente. Achei melhor respeitar o seu tempo.

- Estou me sentindo bem melhor agora.

- Coloquei um copo d’água sobre a mesa. Beba e já iremos até o templo.

Levantei-me e bebi toda a água do copo. Em seguida saí para a praça. Pude sentir todo aquele ar puro invadindo meu pulmão, e uma suave brisa roçando meu rosto.

Esperei por cerca de dez minutos. O Guardião sai da casa trazendo consigo uma tigela coberta com um pano.

- Peço que me espere só por mais um minuto. Vou levar essas frutas à casa ao lado e já volto.

- Porque deixar essas frutas na casa ao lado?

- Preciso alimentar alguém.

- Pensei que vivesse sozinho aqui.

- Não. Há mais alguém comigo.

- Posso ir junto?

- Melhor não. Essa pessoa é um pouco arredia. Creio que este não seja o momento de conhecê-lo. Eu volto já.

Não insisti. Ele leva as frutas e retorna pouco depois. Seguimos juntos até o templo.

Ao aproximarmos do templo pude sentir a intensidade da vibração vinda dele. Era uma construção arredondada, cerca de vinte metros de diâmetro, paredes de dez centímetros de espessura, uma porta frontal. Entramos. Lá dentro era claro e demorei a perceber que a iluminação vinha de suas paredes, toda ela, emitida pela vibração. O piso era feita do mesmo material. Um pequeno altar aos fundos. Nada mais, nenhuma imagem ou decoração.

- Simples, mas belíssimo – disse eu

- Este é o Templo Sui.

- E o que significa? É alguma divindade.

- O segredo das coisas está mais próximo do que se imagina, nas coisas mais simples... Estas talvez sejam mais importantes que as complexas. O nome vem de uma linguagem antiga usada pelo seu povo. O significado você entenderá depois.

– E essa vibração que estou sentindo?

- É a energia que sustenta tudo. Percebe como está oscilando?

- Sim. Não é constante.

- E não deveria ser assim. Deveria ser constante. Se não for consertado, tudo ruirá.

- E como se faz pra corrigir o problema?

- Aproxime-se da parede e coloque sua mão nela.

- É incrível. Há uma energia, como se fosse o reboco da parede.

- Observe bem. O que mais vê?

- A parede é feita de pequenas pedras arredondadas e achatadas... Em vários tamanhos, mas muito bem encaixadas. São seixos, em vários tamanhos, mas muito bem encaixadas.

- Exato, mas aqui a chamamos de “aleixos”, com sentido de proteção, ou aquele que protege, dá segurança, sustenta. Você entenderá a razão do nome e de tudo que este lugar representa; assim espero... Em especial, essas pequenas pedras lapidadas pela natureza têm em sua composição minérios existentes apenas neste local. E há um padrão na forma de encaixe; não importa o tamanho, todas têm a mesma importância e utilidade.

- Notei isso. Mas em alguns pontos foge a esse padrão.

- São falhas. O que alimenta a energia são essas pedras e a forma em que são encaixadas. Essa mesma energia gerada mantém toda a estrutura das pedras. Uma depende da outra, entende? Quando surgem falhas, abalam o equilíbrio do conjunto todo. É necessário corrigir, e isso é feito colocando mais pedras como essas, na sequência adequada.

- É incrível como elas se mantém. Foge totalmente à lógica. Difícil de acreditar.

- Para quem desconhece os mistérios, parece impossível, mas não é. Os homens não têm o conhecimento necessário pra entender uma fração sequer do todo. Mas como vê, tudo é harmonia.

Aquela estrutura emanava uma energia incrível. Fazia com que me sentisse bem, revigorado e disposto a entendê-la. Olhando com mais atenção, percebia-se que as falhas não eram poucas. Daria um trabalho e tanto reparar tantos danos.

- Mas porque você deixou que ocorressem tantas falhas? Não poderia ir consertando ao longo do tempo?

- Difícil pra mim fazer isso sozinho. Todos na aldeia cooperavam e não havia problema algum com a conservação, mas a cobiça e ganância, foram corrompendo todos eles. Conforme iam partindo, foram surgindo fissuras causando instabilidade na estrutura do templo. Sou o guardião, mas não posso consertá-lo. Apenas consigo orientar quem o faz. Cada um nesta aldeia tem uma função e cada qual é necessário, assim como cada um destes aleixos, seja pequeno, médio ou grande. Vê? Não é possível colocar um aleixo grande no lugar de um pequeno, nem fazer o contrário; e um não se sustenta sem que o outro esteja em seu lugar. Tudo deve encaixar-se perfeitamente.

- Humm... E como vamos fazer isso se a energia nos impede de alcançarmos as pedras?

- Eu não consigo, mas você sim. Não é tão difícil. Ponha a mão novamente sobre a parede. Concentre-se e deseje alcançar os aleixos.

Com a palma de minha mão apoiada sobre a energia, fechei os olhos e desejei tocar as pedras. A energia foi cedendo naquele local, envolvendo minha mão, até que pude tocar nos aleixos. Fiquei sentindo aquela vibração por alguns instantes. Retirei minha mão e perguntei ao Guardião:

- Farei como me disser. Não deve ser tão difícil, embora ache que vá demorar um pouco. São tantas fissuras... Mas tenho mais uma dúvida: Como faço com as lá de cima? Iremos precisar de uma escada.

O Guardião que apenas me observava, sorrindo, aproxima-se de mim, colocando a mão em meu ombro. Suavemente me diz:

- Solte-se... liberte-se... deixe-se levar. Liberte-se do que o prende ao chão. Não se prenda a velhos conceitos. Eles o mantém escravos. Evolua e alcançara a verdade. Concentre-se e verá do que realmente é capaz.

Novamente fecho os olhos, procurando me libertar de qualquer dúvida. Senti meu corpo leve, começando a flutuar. O movimento de meu corpo obedecia a meu desejo, podendo chegar ao topo, totalmente alheio à força da gravidade. Desço novamente e ao tocar o pé no solo, sinto novamente a força que me prende ao chão.

- Quer dizer que posso fazer isso sempre?

- Na verdade, isso só é possível aqui dentro.

- E se precisar de reparos do lado de fora?

- Todo o conserto deverá ser executado aqui de dentro. Sempre que quiser consertar algo, comece por dentro. Sempre será mais fácil.

- Gostaria de começar logo então. Me dê as pedras que vou colocando no lugar.

- Este é outro trabalho que você deverá fazer sozinho. Mais uma vez peço que me perdoe pela inércia, mas não consigo executar tal tarefa.

- Pressinto que lá vem bomba pro meu lado...

Ele acha graça.

- Na verdade, não posso tocar nessas pedras, como já havia lhe dito antes. A energia contida nelas deverá ser conservada até que sejam encaixadas. Se ficar muito tempo fora, se perderão no espaço.

- E onde consigo encontrar essas pedras?

- Notou a cachoeira que forma o lago lá fora? Onde a água cai, formando uma bacia ao fundo, está cheia delas. É necessário mergulhar e trazê-las. Além de você, nada poderá tocá-las, portanto não poderão ser acondicionadas no que quer que seja. Conseguirá trazer no máximo duas, uma em cada mão. Será o tempo exato para que encaixe cada qual em seu lugar, sem que se perca sua energia.

Eu corri o olho por toda a parede, imaginando quanto tempo gastaria pra “pescar” todas aquelas pedras e encaixá-las em seu devido lugar.

- Mas isso vai dar um trabalhão! E vai demorar muito.

- Não disse que seria fácil. Mas é importante que o templo seja restaurado.

Penso em recusar tal trabalho, mas algo me impulsiona a aceitar.

- Eu farei o trabalho. Gostaria de começar imediatamente.

- Demorará alguns dias. Está disposto?

- Sim – disse agora com mais convicção.

- Deverá usar isso aqui – diz, retirando de dentro de sua bata, uma faixa de linho grosso – Dispa-se e enrole isso em sua cintura.

Fiz o que me pediu. Ele me orientou sobre a forma de usá-la, passando entre as pernas e nas laterais, amarrando as pontas na cintura.

- Vamos. Eu lhe mostrarei o ponto exato onde deve recolher os aleixos, e o acompanharei durante o início de seu trabalho, caso tenha alguma dúvida.

Seguimos até a borda do lago, próximo à cachoeira. Ele me orienta.

- Deve mergulhar neste ponto. Comece trazendo de uma a uma. Quando sentir-se mais seguro, poderá trazer uma em cada mão.

Enchi os pulmões de ar e mergulhei. Não era fundo, no máximo dois metros. A água límpida me permitia ver com clareza o fundo e escolher qual pegar. Como era a primeira, certamente serviria em algum lugar. Passaria a escolher quando estivesse terminando. Peguei uma grande e voltei à superfície. Percorri os cinquenta metros até o templo e procurei seguir um padrão: da esquerda da entrada para a direita. No primeiro encaixe a ser consertado que requeria uma pedra grande, concentrei-me e empurrei-a lentamente para que se encaixasse perfeitamente, corrigindo a fissura. Retirei minha mão e percebi como a energia circulava por ali perfeitamente. Naquele ponto não havia mais problema.

- Perfeito! – disse o Guardião – Creio que poderá prosseguir sem mim. Devo me ausentar um pouco pra cuidar de meu amigo. Continue assim. Qualquer coisa que precise, apenas grite meu nome que virei lhe ajudar.

Até o entardecer mantive o ritmo, sem nenhum sinal de cansaço. Pra dizer a verdade nem vi o tempo passar. A energia emanada pelas pedras deixava o ambiente mais claro. Neste momento, quando voltava do lago com mais um aleixo, encontro o Guardião na porta do templo. Ele espera enquanto eu coloco essa última pedra.

- Está fazendo um ótimo trabalho, meu rapaz. Mas creio que esteja na hora descansar.

- Não me sinto cansado, posso adiantar bastante ainda hoje.

- Melhor não. Há tempo pra tudo. Tempo de trabalhar e tempo pra descansar. Assim é também com a energia que mantém o Templo Sui.

- Mas...

- Faça como digo. Amanhã você continua. A energia adicionada com as pedras precisa se estabilizar, e necessita de um tempo pra isso. Assim como você precisa de um tempo pra se recompor, embora se sinta bem. Acredite. É necessário que seja assim.

- Está bem.

- A ceia está pronta. Vista-se e deixe a faixa no altar. Deverá usá-la amanhã também. Estarei te esperando em minha casa.

Pouco depois entro na casa do Guardião. Meu prato já estava servido, sobre a mesa. Teríamos sopa de legumes e pão. Ceamos em silêncio. Não estava com tanto apetite assim, mas comi tudo que ele havia me servido. Sentia-me bem. Ele recolheu as tigelas vazias e voltou a sentar-se à mesa. Por fim, perguntei:

- Ao vir do templo pra cá, vi movimento em uma das casas, ao sul da praça. Seu amigo mudou-se pra lá?

- Não, não... Ele continua aqui do lado. O movimento que viu foi de alguns moradores que voltaram enquanto estava trabalhando no templo. Pra ser mais exato, quatro casas voltaram a serem ocupadas.

- Poxa, que bom! Sinal de que a vila não sumirá, e tudo voltará ao normal por aqui.

- Sem dúvida, uma ótima previsão. Tudo graças às melhorias na estrutura do Templo de Sui. Eu lhe agradeço pela ajuda e dedicação.

- Fiz tudo aquilo de coração.

- Creio que outros moradores voltarão, se continuar. Espero que todos voltem assim que todo o tempo esteja restaurado.

- Também gostaria muito que isso acontecesse. Não sou um morador daqui, mas confesso que gostei deste lugar.

- Você sempre será bem-vindo aqui.

- Esses moradores é que faziam a manutenção do templo. Se eles também se engajarem na restauração, mais depressa outros moradores voltarão.

- Não é tão simples assim. Esses moradores precisam se purificar primeiro. Deverão ficar incomunicáveis até a próxima lua cheia. Sem qualquer contato com o templo.

- E porque eu não tive que passar por essa quarentena? Mal cheguei e já pude tocar nas pedras, no templo...

- Você é um caso à parte. Você não está aqui por acaso. Você foi escolhido pra estar aqui e cumprir essas tarefas.

- Escolhido por quem?

- Pelo destino – responde ele com um sorriso irônico – Nada acontece pelo simples acaso. Mesmo nossas escolhas pessoais, a fazemos por algum motivo. E assim é com tudo que fazemos.

- Isso tudo me parece estórias de botequim.

Ele solta uma risada. Pela primeira vez o vi sair daquela mansidão, extrapolando a pose de homem controlado e senhor de si. Parecia uma pessoa normal agora, e não, aquele que tem a resposta pra tudo. Eu também ri.

- Mas agora vamos repousar – diz ele – Amanhã acordamos bem cedo e deverá continuar seu trabalho.

O guardião arma uma rede no meio da sala. Pensei que fosse pra mim, mas ele deita-se nela e aponta pra sua cama, dizendo que deverei ficar ali. Tentei questionar, não achando justo que ele cedesse sua própria cama a outro. Como sempre ele me justifica a atitude e me convence.

Dormi assim que deitei. Nem vi o passar da noite. Acordei na manhã seguinte, com os primeiros raios do sol, e o cheiro de chá. Sentei-me na cama e o Guardião já servia tapioca com mel de abelha. Antes de ir até a mesa, chego no vão da porta da sala e percebo que uma grande parte da aldeia estava sendo ocupada por moradores, retornando à vila, ocupando as casas mais próximas da praça. Alguns cuidando do jardim, outros preparando de desjejum. Como que num milagre, algumas roseiras já apresentavam o verde das folhas. Aquela vila que antes parecia uma cidade fantasma, agora irradiava vida.

O café da manhã revigorou minhas forças. Digo ao Guardião que estava saindo pra continuar meus trabalhos. Ele me diz pra fazer um intervalo no trabalho quando o sol estivesse próximo da metade de sua jornada, pra só retornar quando fosse, ao que eu entendi, por volta de três da tarde.

E assim fiz. Sem nenhum contato com os moradores, nenhuma palavra ou cumprimento. Eles também sequer me dirigiam o olhar. Continuavam na reclusão, sem comunicação até mesmo entre eles.

Por mais dois dias continuei a “pescar” os aleixos, terminando naquele final de tarde. Um pouco exausto, mas ainda com muito ânimo, procuro o Guardião e o chamo pra conferir a restauração do Templo Sui.

Ele entra comigo, procurando sentir a energia emanada do Templo. Já não era mais intermitente. Era constante, fazendo com que alimentasse nossa alma, nos deixando em estado de graça. A iluminação era mais intensa. Percorremos os olhos por toda a estrutura. Nenhuma falha. O Templo Sui estava finalmente restaurado. Lá fora, a vila toda estava ocupada. Nenhum casebre abandonado. À frente de cada casa, os canteiros de rosas mostravam-se de um verde vivo, aqui e ali, algum botão de rosa despontando.

Saímos pouco depois e aguardamos logo depois da porta. Os moradores também se aproximaram, ficando todos alinhados na praça, de acordo com a posição de suas moradas, fazendo um corredor central, da porta do templo até a casa do Guardião. Ele pede que eu espere um pouco e passa entre todos, indo até a casa de seu amigo. Retorna pouco depois, amparando o amigo que tanto cuidara aqueles dias todos. Ao aproximarem-se do templo, percebi que aquele não se parecia com nenhum dos outros moradores. Tinha a pele bem mais clara. Um pouco envelhecido. Bem mais de perto tive a impressão de que o conhecia, mas não conseguia dizer de onde. Seu rosto me era familiar.

Eles perfilam comigo, de frente para os moradores, ficando o Guardião no meio, eu à esquerda e seu amigo à direita. Sentamos e o Guardião diz:

- Hoje mais um ciclo se completa. Passado e futuro se encontram para que o equilíbrio entre as forças que moldam esse mundo seja restabelecido. Que essa harmonia possa propagar-se entre todos os seres.

Em seguida, ele parte um pão em três partes, dando uma das pontas pra mim, a outra para seu amigo misterioso, ficando ele com o meio do pão. Todos os moradores traziam consigo seus próprios pães. Ceamos ali, em conjunto e em silêncio. Tinha curiosidade sobre o amigo ao lado, mas tive receio de cortar algum protocolo da cerimônia.

Terminada a ceia, cada um dos moradores, em ordem e um por vez, aproxima-se do Guardião e deposita na tigela à sua frente, pequenas pedras, ou metais amarelos. Após o último colocar ali sua oferenda, o Guardião as recolhe e as coloca em um saquinho de linho, fechando-a com um pequeno laço.

Ao Terminar, o Guardião pede que eu e seu amigo misterioso deitemos ao lado dele e ele coloca uma mão em cada um de nós na altura do umbigo. Neste momento sinto-me levitar. Através do Guardião, servindo como ponte, a energia do templo chega até nós. Minhas pálpebras ficaram pesadas e imediatamente caio em um sono profundo.

Não sei dizer o tempo que passou, ou minha noção do tempo passado. Acordei já com o sol alto no céu. Imaginei ser próximo do meio-dia. Estava todo vestido, sem os sapatos, ao lado sul da ponte caída. A tora de jatobá que permitia atravessar de um lado e outro do rio já não estava mais lá. Ao meu lado, a mochila que havia perdido no rio, ainda encharcada. Ainda estava atordoado com o que havia feito, visto e sentido naqueles últimos dias. Acho melhor voltar pra cidade.

Ao chegar ao carro percebo que os quatros pneus estão furados. No mostrador do rádio ainda mostrava a mesma data de minha chegada ali. “Isto deve estar com defeito” - pensei. Verifico o celular e percebo que a bateria estava descarregada. Também, dali, não conseguiria sinal pra pedir ajuda. Teria que fazer a caminhada toda de volta a pé. Pra não carregar peso, coloco a mochila no porta-malas, mas assim que o faço, um pacote cai lá de dentro. Não me lembrava daquele pacote em minha mochila e o abro. Lá dentro, algumas pedras brilhantes e metais amarelos. Não dou importância no momento. Jogo de volta no porta-malas e inicio a caminha de volta à cidade. Sabia que seria uma caminhada longa, mas me sentia bem mais confiante. Seria bom pra meditar sobre os últimos acontecimentos.