Echoes - Capítulo 2

Capítulo 2 - Questões e Tempo perdido.

- Doppelganger? - Perguntou Lívia curiosa, as amigas se despediram percebendo que talvez gostaríamos de estar a sós.

Eu ainda encucado com meu sósia fazia uma varredura do ambiente, sem nenhuma resposta:

- Sim... Doppelganger é um ser mitológico germânico, uma criatura que toma a forma da vítima... Dizem ser um mau agouro. - Respondi quase que automático, tomei minha atenção para ela.

Ela sorria com os olhos cerrados, ela sempre imprecisa e pontual só estendeu o braço para eu agarrar.

Eu sorri de volta e dei de ombros, agarrando o braço dela:

- Mau agouro pode ser tanta coisa né? - Perguntou ela enquanto andávamos.

Eu ri:

- De fato. - Disse enquanto atravessávamos os campus, sem dar a mínima para os olhares curiosos que eu já havia previsto.

- E o trabalho do Paulo? - Perguntou curiosa enquanto sentávamos num banco de pedra entre as lanchonetes.

- Eu não abri ainda... - Respondi sincero.

Ela ergueu os olhos:

- Nunca conseguiria conter a curiosidade.

Eu ri, olhei o relógio e faltava vinte para as 21h30, daria tempo de abrir e ler ali com ela antes de termos que ir para a última aula.

- Vamos abrir juntos então. - Disse para agrada-la, peguei o papel, desdobrei e posicionei de uma forma que pudéssemos ler juntos.

O enunciado era simples:

"Se por algum motivo desconhecido e irrelevante para a questão você fosse capaz de voltar no tempo para a época em que o líder nazista Adolf Hitler fosse apenas uma criança, quais seriam suas medidas para impedir o movimento nazista e o Holocausto?"

Li novamente, aparentemente ela também, nos olhamos de forma curiosa, ela ainda em silêncio:

- Não esperava por isso. - Comentei com ela, e honestamente não esperava mesmo, mas as reações dos meus colegas indicaram isso anteriormente.

- Bom, é engraçado por que existem diversas questões que podemos abordar com esse enunciado, vários caminhos a se seguir, mas sabemos que o professor é exigente demais e o enunciado não parece seguir uma fórmula criteriosa... - Dizia ela para si mais do que para mim.

Dei de ombros para mim mesmo também:

- De qualquer forma não consigo elaborar uma questão agora, como você disse, são muitos caminhos para se seguir, ele não dei número mínimo nem máximo de linhas, o que abrange a resposta demais... É simples a uma primeira vista mas ao mesmo tempo bem complicado. - Respondi, tentando refletir o mínimo sobre a questão.

- Eu percebi uma coisa... Mas é seu trabalho e não quero de forma alguma me intrometer.

Li novamente tentando encontrar o que ela teria percebido, dei de ombros novamente:

- Depois penso nisso de qualquer forma. - E antes que pudesse guardar a folha ela segurou minha mão.

- Tem algo escrito na parte de trás. - Ela apontou, realmente tinha.

"Vocês tem três dias para entregar."

- Ok... Três dias então. - O prazo máximo era sexta feira a noite então, eu realmente não queria pensar nessa questão agora.

- Eu acho o Holocausto uma tragédia imensurável... - Disse Lívia de repente.

Faltavam agora cinco minutos para bater o sinal, 21h25 da noite.

Passei meu olhos pelo rosto dela, ela estava séria, não absolutamente mas talvez parte dela.

Arrisquei pegar na mão dela, ela não moveu um músculo:

- Somos feitos de tragédias e sonhos, acho que isso molda o universo inteiro... - Me arrependi quase que imediatamente de dizer algo bobo assim.

Ela recobrou o sorriso:

- Acho que sim. - Disse e nos aproximamos.

Eu arrisquei continuar:

- Foi uma tragédia ter ido naquele bar sozinho ontem, tava afim de beber algo... Mas foi como um sonho ter te encontrado lá! - Disse em tom cômico, ela não recebeu aquilo como uma piada.

Nos aproximamos um pouco mais:

- Eu me atrasei e fazia parte do meu caminho, uma tragédia... - Disse séria. - Mas...

E nos beijamos pela primeira vez.

Um sonho pode ser qualquer coisa.

Terminei o beijo com a mão no rosto dela, nos olhamos por um tempo e sorrimos:

- Quero te dar uma coisa... - Disse ela ainda me olhando.

- Ok... - Disse sem graça.

Ela pegou a bolsa, abriu e mexeu por um tempo, tirou de dentro uma caixinha e empurrou no meu colo.

Eu peguei, abri. Era um colar, a corda preta envolvia em uma rede uma pedra branca:

- Nunca te vi usando um colar, pensei que iria gostar. - Disse meiga.

- Eu amei! - Disse honesto, vestindo o colar.

Nos olhamos mais um pouco, nos beijamos novamente.

Ficamos um tempo com o rosto perto um do outro, sentindo o calor.

Ela tirou devagar e olhou para o relógio, tirei o celular do bolso e vi a hora.

21h30.

- Preciso ir... - Disse ela.

Consenti, levantamos e ela sumiu na multidão.

Por um momento eu havia esquecido completamente do Doppelganger, do T.C.E e de qualquer outra coisa:

- Certo, eu também...

Ela levantou e me deu um outro beijo breve, deu as costas e sumiu campus adentro.

Eu fiquei ali ainda um tempo, tantas coisas aconteceram em dois dias, eu normalmente era um cara normal, cabulava muita aula e jogava muito video game, dormia demasiadamente, não era como se minha vida fosse importante demais.

Leo apareceu logo em seguida:

- Sem comentários pra essa questão, eu vou ter que ser honesto com o Paulo, eu mataria o Hitler. - Disse sentando sem ser convidado. - De uma maneira com que ele não sentisse muita dor.

- Cara... Eu e a Lívia nos beijamos... Ela me deu um colar. - Apontei para o colar já no meu pescoço.

Ele parou por um segundo e logo comemorou:

- Que maravilha! Pelo menos algo bom acontecendo contigo, quem sabe isso não faça você sair mais de casa. - Disse honesto.

Dei de ombros com força:

- E você, pensou em como matar o Hitler? - Disse rindo.

- Meu, é sério... É a resposta óbvia, eu tentaria re-educar a criança mas eu não falo alemão, húngaro, polonês sei lá. - Ele falou de forma tão natural, eu não ao menos havia pensado nesse obstáculo.

Será que seria isso que Lívia havia mencionado quando disse que percebeu algo? Como vou convencer a criança Hitler a não ser a criança Hitler se não falo o mesmo idioma que ela? Merda eu sentia que estava ficando pra trás nessa questão:

- Logo o mais óbvio é mata-lo, mas será que o professor espera esse tipo de honestidade? Será que é por isso que ninguém nunca passou? - Leo estava fritando nessa questão, eu por outro lado olhava vagamente os alunos voltando para seus respectivos campus.

E o vi novamente, de costas dessa vez, meu doppelganger:

- Preciso ir Leo. - Disse de repente, levantei e deixei-o falando.

Não esperei a reação dele, por algum motivo ver aquela pessoa mesmo de costa, mesmo sabendo que não era um Doppelganger e só alguém parecido comigo me causava uma sensação de estranheza enorme, algo que podia ser quase sentido no ar.

Corri até cansar e alcancei o meu sósia, parei e dei a volta despretensiosamente.

Não era meu doppelganger, nem um sósia, nem nada do gênero.

Apenas alguém com uma blusa parecida, que me olhava de forma curiosa por estar ofegante e claramente seguindo-o.

Mas a sensação não havia passado, quase que um distanciamento do chão, era como se eu sentisse um cheiro engraçado e não soubesse de onde viesse, ou quisesse lembrar aquela palavra que está na ponta da língua.

Olhei em volta, pessoas indo e vindo de todos os lugares.

Balancei a cabeça, a sensação não passava, mas eu não tinha o que fazer.

Suspirei e decidir ir embora, não iria assistir a próxima aula.

21h50

Fui andando devagar até a bicicleta, estralei o pescoço e voltei para a republica.

A sensação esquisita aos poucos foi passando e eu esqueci, esqueci completamente do Doppelganger, não foi um assunto que me ocorreu mais.

Guardei a bicicleta na garagem e subi para o segundo andar onde ficava nosso apartamento, era grande e tinha quatro quartos, um para cada garoto, havia conhecido todos eles ali e nos dávamos bem, eu morava há 4 anos naquele lugar e em breve aquela época ficaria na memória.

Cumprimentei o Carlos que estava assistindo tv na sala e comendo algo que não identifiquei, ele acenou breve e desinteressado, eu acenei de volta, ele perguntou como tava a faculdade:

- Cheia, como sempre. - Respondi rapidamente. - Vou entrar que tenho coisa pra fazer.

Ele só acenou novamente.

22h05 olhei novamente a hora no celular.

Entrei no meu quarto, fechei a porta, tirei o colar e guardei na primeira gaveta da cômoda, eu tinha uma mania de perder tudo que era acessório, seja anel, colar, corrente, então preferi guardar o presente que a Lívia me deu com tanto carinho, era importante pra mim.

Sentei na mesa do computador, acendi a luminária, coloquei o T.C.E sobre a mesa e encarei a folha por muito tempo.

Eu não conseguiria conversar com o Hitler criança, eu não falo o idioma dele... Nem os pais dele... Matar seria a única opção? Seria realmente essa a resposta que o professor quer de nós?

Pensei em todas as aulas sobre o nazismo que tive, todos os livros, vídeos, documentários.

"Segundo diversos autores o nazismo foi um fenômeno orgânico, não é como se Adolf Hitler fosse o anticristo que tramou tudo sozinho, a Alemanha vivia um período polarizado...

Calma! Então o Hitler não é o único fator que importa aqui, mas de qualquer forma o enunciado pede que eu...

O enunciado..."

Peguei a folha e li novamente o enunciado.

"Quais seriam suas medidas para impedir o movimento nazista e o Holocausto?"

"O enunciado assumi que eu teria alguma medida contra o movimento nazista, e que isso envolve de alguma maneira o Adolf Hitler criança..."

Parei por um momento e refleti.

"Esses quatro anos aprendemos que o papel do historiador não é esse, eu não sou Deus muito menos um juiz, eu não tenho que julgar nada, eu preciso problematizar, criar questões sobre isso..."

Dei um soco na mesa.

"Qual a resposta que ele quer de mim, ele assumi aqui que Hitler está diretamente ligado a tudo que aconteceu, e sim, ele está, mas somente ele? E assumi também que eu tenho que tomar medidas preventivas contra isso?"

Suspirei forte e me inclinei na cadeira, estava ali há praticamente meia hora apenas e completamente de saco cheio.

22h30

Levantei e fui assistir um pouco de tv com o Carlos, jogamos conversa fora, comi um pouco do que ele estava comendo, ainda não sei dizer o que era exatamente, uma massa doce em pequenas porções, ele era meio louco então provavelmente era algo que ele mesmo tinha inventado, voltei mais tarde pro quarto e deitei me preparando para dormir, não pensei mais na questão.

Olhei o relógio do celular pela última vez, 00h15.

Minha quinta-feira foi bem comum, acordei por volta das 10h da manha, lavei roupa e coloquei na secadora, lavei a louça (toda quinta era minha vez), olhei para a folha somento no início da tarde, conversei com a Lívia pelo celular, algo sobre o tempo estar fechando, ela comentou que ia ter uma festinha de despedida de algum curso "x" no barzinho que nós fomos, me convidou e eu aceitei, depois disso tomei banho e me troquei para ir para a faculdade.

18h45

"Te vejo hoje na faculdade?" - Perguntou para a Lívia pelo celular antes de subir na bicicleta.

"Não sei, tenho umas provas chatas de latim"

Meu deus quem estuda latim? Dei de ombros "Tudo bem, amanha no barzinho então (: "

Subi na bicicleta e fui devagar para a faculdade.

Era uma cidade pequena a que eu morava, pensava como seria me despedir dali, estava acostumado.

A cidade inteira vivia em função da faculdade, todos os bares, lanchonetes, praças praticamente rodeavam a faculdade, uma "cidade universitária".

Era possível cruzar a cidade inteira de bicicleta e eu me aproveitava bem disso.

18h57

Cheguei cedo e fui comer alguma coisa, pedi uma esfiha de carne e exagerei um pouco na pimenta, bebi refrigerante e fui dar uma olhada pela biblioteca, peguei uns livros sobre nazismo e folheei até dar a hora da minha primeira aula.

Encontrei o Leo pelos corredores gritando alguma coisa sobre ter terminado o trabalho e estar confiante:

- Entreguei o meu e vi uma pilha de trabalhos prontos, talvez até de outros cursos. - Dizia enfático.

Leo era grande, maior do que eu, os cabelos bem pretos bem bagunçados, tinha um sorriso bem largo que virava até ponto de referência, era geralmente bem humorado e cercado de pessoas:

- Eu não queria deixar pra entregar amanha, no último dia, mas vou acabar fazendo isso. - Jéssica era uma das nossas colegas de classe, eu sinceramente me abstraía a ser amigo do Leo, de resto eu era mais um político ali, acenava e cumprimentava todo mundo, mas não passava daquilo minhas relações.

- E você Tom? - Perguntaram pra mim.

- Eu terminei faz tempo! - Menti em um tom superior, aparentemente todos acreditaram.

19h15

Minha primeira aula foi de Psicologia na Educação três, uma aula interessante com um professor irritante, passou rápido.

20h30

No intervalo fiquei na sala, com minha folha do T.C.E, sozinho e pensando.

"Não consigo chegar a lugar nenhum..."

Dei de ombros, guardei a folha e esperei a segunda aula começar enquanto ouvia música.

Lívia mandou uma foto pelo celular, de um acidente que teve ontem perto da faculdade, um caminhão atingiu um poste e fez um estrago na casa de uma mulher.

"O mais curioso é que não encontraram quem causou o acidente, aparentemente o caminhão não tinha motorista." A mensagem que acompanhava a foto, "lembrei de você que curte coisas bizarras"

Ri baixo, respondi "O motorista deve ter ido embora quando viu o estrago que fez, nada demais."

Fechei o celular e guardei no bolso da calça.

21h30

A segunda aula eu assisti pela metade, era pra ajudar a galera que ainda não tinha feito o T.C.C, mas o meu estava concluído e meu orientador fazia contato direto comigo com todas as questões, o que era comum em outras universidades mas não aqui.

22h00

Sai mais cedo, andei em volta do campus e não encontrei a Lívia, olhei no celular e nenhuma mensagem, decidi ir pra casa pensar mais sobre a questão, afinal meu prazo estava apertando.

Mas na verdade tanto no caminho quanto em casa só olhava o celular atrás de uma mensagem da Lívia.

Joguei vídeo game sozinho até muito tarde.

Olhei o relógio antes de deitar, 5h30 da manhã, preciso descansar.

No outro dia acordei perto da hora de ir pra faculdade, meu celular vibrava loucamente com o Léo ligando:

- Alô - Atendi ainda sonolento.

- O professor vai recolher a parada antes da primeira aula e dar o resultado ainda hoje! - Gritou o Leo do outro lado da linha. - Corre pra cá agora!

Levantei num pulo, não havia escrito uma linha sequer.

Tomei um banho rápido e me vesti, corri até a bicicleta e voei para a biblioteca.

18h30

Ninguém me perturbou no caminho, ninguém leia-se Leo.

Sentei e abri a folha com a caneta na mão, li o enunciado novamente.

Eu não podia responder algo apenas para impressionar o professor Paulo, por mais que eu tenha esse sentimento dentro de mim, ele era realmente um professor incrível, mas seja lá o que eu fosse responder tinha que sair de mim.

"Eu não mataria uma criança jamais.

E por mais que eu matasse, o que isso resolveria de fato?

Uma coisa era certa, aquela criança não era um líder nazista, era apenas uma criança, eu não posso julgar ele antes dele cometer tudo... Pera, será que é isso?"

Pousei a caneta na folha, olhei o relógio, o prazo estava terminando.

Eu não tinha uma resposta.

Talvez não exista uma resposta certa.

"Aquela criança não é um líder nazista, talvez um em potencial, mas não posso julgar, quem sou eu pra julgar?"

Naquele momento hipotético na minha cabeça eu não enxerguei no pequeno Hitler o Hitler de fato, naquele momento hipotético ele ainda não era um líder nazista, a história não havia sido escrita ainda.

Eu não poderia re-educar, nem matar... Eu não poderia mudar o curso das coisas.

Li o enunciado novamente, nele o professor assume que eu teria alguma ação que mudaria a trajetória das coisas, nesse caso, eu não tenho uma resposta.

"Não existe uma resposta." escrevi, coloquei meu nome.

19h30

Segui para a sala, convicto de que não passaria com essa resposta, mas que isso era o que meu coração no momento afirmava e pulsava dentro de mim.

Entrei na sala, ele estava lá parado em frente a pilha de folhas, me olhou enquanto eu me aproximava, larguei a folha na pilha, fitei-o nos olhos, dei as costas e sai da sala.

Não queria assistir nenhuma aula hoje, fiquei no pátio e ignorei todos que vieram falar comigo, aquela reflexão havia me deixado puto.

Alguém se aproximou de mim mesmo minha feição sendo de clara antipatia:

- E ai, o que deu com o T.C.E? - Perguntou Lívia sentando de frente comigo.

- Horrível o teste, pergunta muito estúpida. - Disse ranzinza.

Ela riu:

- Agora que eu entreguei, me diz, o que você percebeu no enunciado? - Perguntei pra ela, que se ajeitou antes de responder.

- O professor induz ali a seguirmos determinada linha de raciocínio, talvez indo pelo lado contrário só que acharemos a resposta que ele quer. - Disse ela, sucinta e objetiva.

Sorri pra ela, que sorriu de volta:

- Bom, eu passei pra te dar um beijinho só, preciso voltar pra aula. - Disse me dando um beijo rápido. - Te vejo no bar hoje? Parece que vai ter uma banda ao vivo.

Balancei a cabeça positivamente:

- Prometo estar menos ranzinza lá! - Disse feliz.

Ela concordou e saiu.

Balancei a perna até o relógio bater 21h30 que era a hora que a última aula começaria, como sempre o relógio era marcante no meu dia.

Fui impaciente pra sala, o professor Paulo estava parado na mesa do professor coçando a barba com suas luvas brancas, era possível ele ter realmente corrigido tudo aquela altura? Ele teve o que? Pouco mais de duas horas pra corrigir tudo? Ele teria uma equipe ajudando com isso?

"Ah"

Dei de ombros.

Entrei, sentei e ele começou a falar:

- Como não é surpresa pra mim nem pra ninguém, novamente nesse ano letivo nenhum aluno de nenhum curso foi aprovado no T.C.E. - Disse seco e mecânico com um sorriso malicioso. - Infelizmente a não ser que vocês prestem outra faculdade em outro curso da qual eu esteja lecionando, não terão mais a chance de participar desse processo seletivo, agradeço a paciência de todos e isso é tudo.

Eu sinceramente não esperei nem a reação de todos, levantei antes mesmo dele terminar de falar, não me interessava mais aquilo.

Sai da sala batendo a porta e fui até o banheiro, aquela sensação idiota tinha voltado, forte dessa vez.

Cheguei a cogitar um vômito, mas a sensação passou rapidamente, olhei no relógio, 21:38:

- Você ta bem cara? - Leo veio até o banheiro ver se eu tava bem.

- To sim, só bateu uma tontura aqui... Mano, você acredita em coisas sobrenaturais? - Perguntei sincero, lavando o rosto e olhando pra ele.

- Não e nem você - Disse rindo.

- Pensei ter visto um Doppelganger anti ontem. - Contei.

Ele não teve reação nenhuma:

- Agouro de morte! - Disse rindo. - Deixa disso, só era alguém parecido contigo.

- Sim... Provavelmente. - Disse dando de ombros.

Não contei sobre as tonturas, até por que deve ser falta de alguma vitamina, eu tava comendo mal demais:

- Já já vou no bar lá do centro, vai ter uma banda ao vivo e tal, ficou sabendo? - Perguntou Leo.

- Sim sim, despedida de sei lá quem. - Comentei.

- Parece que a faculdade vai estar em peso lá, até professores e tudo mais, vai ser show! - Disse Leo bem animado como sempre.

Ri sem graça:

- Vou devolver uns livros na biblioteca e te encontro lá então? - Disse para Leo, querendo despistar um pouco ele, não estava me sentindo bem.

- Belezaaaaaaa. - Disse. - Eu já vou indo com a galera da sala, fomos dispensados de qualquer forma.

Saiu, me deixando sozinho no banheiro.

Sequei o rosto e sai também, indo na direção contrária da minha sala, queria tomar um ar.

Desci pro pátio e fui andando até o corredor do curso de Letras, queria ver a sala da Lívia de longe.

Andei pelos corredores, subi e desci escada, era realmente difícil encontrar uma sala sem saber ao certo o número dela, o curso de Letras tinham dezenas de milhares de sala, especificações que eu nem fazia ideia.

Mas depois de muito procurar encontrei a sala dela, foi "fácil" por que ela havia mencionado um dia que sentava na primeira fileira, então só procurei-a na primeira fileira.

Lá estava ela, concentrada pra caramba e anotando freneticamente tudo que o professor falava, eu ri da situação, fiquei um tempo de canto olhando, até que infelizmente ela me percebeu ali.

Acenou como quem dissesse "pera ai".

Fiquei sem graça demais, mas esperei. Ela saiu depois de poucos minutos:

- Ei, o que ta fazendo aqui? - Perguntou feliz.

- Er... - Disse sem graça. - Só tava passando.

Ela riu:

- Sei... Da uns minutinhos e eu saiu aqui, eu to vendo uma aula repetida por que gostei muito, então tudo bem sair antes. - Disse animada. - Ai podemos ir para o centrinho já.

Aula repetida, meu deus e ela estava anotando tudo aquilo, isso foi como um atestado de vagabundo pra mim:

- Beleza! - Disse me animando um pouco.

Sentei no corredor e esperei, ela entrou na sala.

Eram 22h15 da noite.

Pouco menos de dez minutos depois ela saiu e saímos do campus, logo da faculdade e caminhamos juntos até o centro da cidade, que ficava poucas quadras da faculdade.

Conversamos sobre tudo, contei pra ela do fracasso de todo mundo no teste do Paulo, ela comentou que era mais do que esperado, me consolou e disse que aquilo não significava nada, consenti mas admiti minha vontade de passar no teste, como uma forma de me provar, para mim e para o professor:

- Ele é cativante né? - Perguntou ela comentando sobre o Paulo.

- Sim... Talvez o maior professor que já tive. - Comentei de volta.

- Ouvi tantas histórias dele, já assisti aulas dele no primeiro semestre da faculdade, eu e você nem nos conhecíamos ainda. - Ela comentou.

- E ai? Como foram as aulas? - Perguntei.

- Fantásticas! Ele inspira a cada palavra que escolhe, e detém tanto conhecimento. Espero um dia ser um terço dele... Digo, ter um terço do conhecimento dele. - Disse inspirada.

Sorri.

Logo chegamos no barzinho que já estava lotado, a maior parte das pessoas estavam do lado de fora, perto do logo cafona de led azul e rosa:

- Parece um bordel dos anos 80. - Comentei rindo, Lívia riu de volta.

A música dava pra ser ouvida do lado de fora, um rock de garagem, identifiquei um Oasis, mas não sabia ao certo que música era:

- Vou entrar e pegar algo pra beber, podemos ficar aqui fora, ta frio mas um frio ameno. - Comentou Lívia.

Eu consenti e ela entrou no bar.

Olhei em volta e reconheci a maioria dos rostos, alunos da faculdade e alguns professores, bebendo cerveja e conversando.

Logo Lívia voltou com uma cerveja pra mim e uma caipirinha pra ela:

- Não curto muito cerveja. - Disse educada.

"Deve detestar", pensei.

Ficamos ali conversando sobre o Paulo mais um pouco, como ele deveria detestar aquele tipo de lugar:

- As vezes conhecimento demais vai me tornar mais rabugento do que sou, talvez eu não frequente lugares assim quando envelhecer. - Disse.

Ela riu:

- Certamente não imagino o Paulo aqui de forma alguma. - Ri de volta.

Leo logo apareceu com uma galera e o foco do assunto mudou.

Ficamos ali e logo nos aproximamos da entrada pra curtir mais o som, me aproximei da Lívia e seguramos as mãos em público, o que pra mim foi importante.

Logo começou a tocar músicas brasileiras, isso somado ao frio que ia aumentando fez com que entrássemos no bar, que estava muito, mas muito lotado.

A banda tocou Capital, Legião e tudo quanto é rock bom brasileiro, cantamos pra caramba e eu comecei a beber de verdade, lá dentro estava bem calor e pulávamos e cantávamos com fervor, o que aumentava a temperatura corpórea.

Lá fora uma garoa se transformou em chuva, uma chuva pesada.

Conforme bebia e pulava, ia me sentindo mais a vontade com a Lívia ali, ela conhecia todas as músicas boas e até as mais ou menos, ela era genial e estávamos realmente tendo um momento muito bom ali:

- Preciso ir ao banheiro! - Gritei no ouvido dela.

Ela só balançou a cabeça pra mim, deixei ela e o Leo ali cantando e fui correndo pro banheiro.

Tinha ficado esse tempo todo sem olhar o relógio, finalmente senti que tinha me desligado um pouco.

Dentro do banheiro o som era bem abafado, fiz o que tinha que fazer ali, fui lavar as mãos, o espelho estava bem sujo mas mesmo assim consegui ver.

O reflexo de alguém saindo do banheiro, com uma blusa preta.

Meu coração disparou, senti novamente aquela sensação, a ponto da minha boca amargurar.

Sai rápido do banheiro, a ponto de ver a figura saindo do bar.

Corri entre a multidão que pulava e cantava "Tempo Perdido", sai do bar e lá fora uma chuva densa caia e o vento cortava de tão frio.

Olhei em volta e não vi nada:

- Tom? - Falou uma voz a minha esquerda.

Pedro Kakaz
Enviado por Pedro Kakaz em 25/08/2016
Reeditado em 30/08/2016
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