Uma batalha sem fim. 1/?

Este será um texto longo, pois a história que se segue assim pede, colocarei reticências nos momentos em que você leitor poderá parar a história sem quebrar o clima dela, dessa forma.

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As velhas almas se encontraram novamente, sedentas e preparadas.

A espada de Kenjirou saiu da bainha num suspiro, sem falar nenhuma palavra avançou contra o conhecido rival.

Kiichi com sua lança flamejante se esquivou do golpe e devolveu com toda a força que seus braços permitiram, o impacto desse golpe foi ouvido em toda a montanha.

As pedras tremiam, o vento urrava a cada golpe desferido, apenas manchas podiam ser vistas e nenhuma imagem distinguida, eram dois titãs batalhando, cada um por sua honra, cada um com uma história.

Kenjirou recuou, subindo em um monte próximo pousou a lança vermelha no solo, que estremeceu, Kiichi fechou os olhos colocando a katana azul de volta na bainha, era o golpe final.

A lenda diz que os continentes foram separados nessa batalha, tamanha a potência dos golpes desferidos, o céu chorou e o sol cedeu a esta batalha entre dois irmãos.

...

A moça andava arrastando o carrinho para a cidade mais próxima, com repolhos e arroz para vender, um saco bem preso nas costas amarrados com fitas verdes.

Era de estatura média, magra e muito bonita, os olhos grandes e o cabelo bem preto que fazia contraste absurdo com a pele branca, vestia roupas simples, sapatilhas de madeiras inadequadas para as mulheres, não que ela se importasse com isso.

Havia percebido há alguns minutos que três homens estavam acompanhando seus passos, mantendo certa distância, vez ou outra interagindo com algum mercador.

A moça parou no mesmo mercador de sempre, largou os repolhos e o punhado de arroz, o vendedor cansado logo pela manhã entregou poucas moedas para ela, que sorriu brevemente para ele e perguntou com educação:

- O senhor sabe me dizer quem são aqueles homens? - Perguntou discreta.

O mercador olhou preocupado fazendo uma varredura do local:

- São do clã Ishikawa... Capangas, costumam tomar dinheiro e colheita dos mercadores novos... Mexem muito com as mulheres também. - O senhor dizia com amargura no peito.

A moça acenou sorrindo e se levantou, voltando-se para a estrada.

Percebeu que os três bandidos agora seguiam descarados, sem receio algum.

A estrada era de terra e a essa altura estavam a sós ali, a moça e os três capangas da família Ishikawa:

- Não é a primeira vez que te vejo por aqui gracinha. - Disse o primeiro se aproximando, era alto e andava curvado, vestia roupas um pouco mais chiques que as da moça, mas não parecia grande coisa.

- Sim sim, eu mesmo a vi semana passada, a moça dos repolhos! - Uivou o menor e mais gordo.

O outro manteve distância dos dois, usava óculos e fitava a situação com mais cautela.

A moça riu para os rapazes:

- Creio que vieram agora pois perceberam que ando sozinha por aqui. - Disse sarcástica, tirando o saco que estava amarrado em suas costas, o único que não havia ficado com o mercador.

Os dois irmãos trogloditas continuaram se aproximando dela, despreocupados:

- Eu vou ganhar um beijinho por ter notado você senhorita? - Quando o mais magro disse isso, o outro riu como um animal selvagem.

A moça sorriu, de cabeça baixa, tirou um objeto cumprido de dentro do saco velho, e antes que os dois trogloditas pudessem reagir, a moça atacou eles.

Se atirou até o primeiro acertando seu queixo, imobilizando-o completamente, o segundo sem reação tomou um golpe igualmente certeiro, este caindo desmaiado.

A moça empunhava uma espada, longa e fina porém ainda dentro da bainha:

- Quem diria que uma mulher carregaria uma katana... - Disse o terceiro ajeitando os óculos. - Mas a culpa foi desses idiotas.

A moça se ajeitou e se preparou para atacar o terceiro, quando o mesmo disse:

- Não tem necessidade de você arrumar confusão com nossa família, sabe muito bem que dominamos todos os feudos da região. - Disse, sendo esperto, pois sabia que provavelmente não venceria em um combate honesto.

A moça guardou a espada de volta no saco, amarrou nas costas, se limpou e continuou viagem.

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Em uma época marcada pela violência e desespero exacerbados, poucos viviam como a família Ogawa, longe de toda civilização.

Não vou arriscar e dizer que a paz reinava ali, mas o distanciamento com certeza havia ajudado eles.

Era cedo as ovelhas já andavam por todo o lugar, o único cavalo do sítio era esbelto e bem cuidado, passava a pata com força no chão de terra.

O pequeno Seiji bocejava com os braços para cima, saiu da pequena casa de madeira e olhou por todo o jardim, seu avô Takashi cuidava da plantação de arroz e acenou para o neto:

- Bom dia Seiji-kun. - Disse Takashi sorrindo, era bem velho e tinha a pele marcada pelo sol, os cabelos brancos e ralos casavam com simetria perfeita em seu rosto retangular.

- Ji-chan. - Sorriu Seiji carinhoso para o avô. - Onde está a nee-san? - Perguntou Seiji se referindo a sua irmã mais velha.

Seiji tinha dez anos de idade completos agora, era um garoto baixo para sua idade, os cabelos bem pretos e perfeitamente retos na testa, era expressivo demais e sempre alegre.

Acontece que Seiji não havia vivido as mazelas de seu tempo e de nenhum anterior:

- Ela foi a cidade, vender os repolhos e um punhado de arroz, deve voltar para o almoço. - Anunciou o avô. - Você se prepare que hoje teremos lições no dojo.

Seiji sorriu de volta e entrou para lavar o rosto e se preparar para as lições de seu avô, sempre tão aguardadas e muito bem aproveitadas.

...

Sentaram os dois e ficaram em silêncio um momento, em função dos espíritos e dos antepassados, o local era sagrado para a família Ogawa, Takashi havia construído aquele dojo com suas mãos, ainda criança, ele, seu pai e seu avô... Há muito tempo atrás.

Se cumprimentaram, e Takashi começou:

"Todos os garotos e garotas passam por isso, quando completam dez anos de idade cabe a nós idosos contar essa história a vocês, isso aconteceu comigo quando tinha sua idade e você quando tiver a minha irá contar a mesma história para seu neto.

Essa é a história que todos sabem, a história de um combate, uma batalha que é travada há tanto tempo, tantos anos quanto estrelas no céu Seiji, a história da batalha entre Kiichi e Kenjiro, os dois filhos da terra."

- Kiichi e Kenjiro... - Repetiu Seiji para si.

O avô continuou:

"Kiichi é o herdeiro de direito, cabe a ele decidir quando o controle e o descontrole devem reinar, conhecido como o rei supremo, Kiichi é fogo puro e ardente, confiante, digno de herdar tudo que existe. É facilmente reconhecido pelos chifres brancos e os cabelos vermelhos, sua armadura resplandece no alvorecer de toda manhã."

Seiji era esperto, e associou rapidamente Kiichi ao sol, o avô deu uma breve parada, respirou e retomou:

"Kenjiro veio depois, criado para auxiliar Kiichi quando deveria ser necessário sua presença, era para ser um rapaz calmo e sério, porém sua fúria veio com a inveja, Kenjiro sentia dentro de si que ele deveria ser o herdeiro do mundo, era capaz... Porém viver as custas do irmão mais velho nunca foi o suficiente, um combate sem precedentes se iniciou, no início dos tempos... Kenjiro portador da espada azul, uma katana que serve para nome-alo, nenhum outro tem permissão para empunhar tal espada... Seus olhos Seiji, Kenjiro tem os olhos brancos marejados."

Seiji pensou um instante, seu avô lhe deu esse espaço:

- Kenjirou é a lua avô? - Perguntou Seiji.

O avô sério respondeu:

- Kenjirou é muito mais do que isso rapaz... - Se levantou. - Por hoje está bom, peço que reflita sobre o que ouviu.

Seiji agradeceu o avô:

- Um último pedido Seiji-kun, não precisa comentar sobre essa história com ninguém, muito menos com Aiko. - O avô parecia sério, Seiji decidiu obedece-lo antes mesmo de pensar sobre o pedido.

Se cumprimentaram, Takashi saiu primeiro, cansado com a idade.

Seiji ficou ali por um instante, pensando sobre os dois irmãos Kiichi e Kenjirou.

Se levantou, foi buscar uns livros que tinham na casa, deixando o dojo para trás com um cumprimento para os espíritos.

...

Os três capangas da família Ishikawa chegaram até o poço de pedra, onde um general comandava uma pequena tropa deles, general este que no momento não estava presente.

A família Ishikawa há muito ultrapassou os limites sanguíneo, eram extensa e poderosa, dinheiro e força em combate eram a base para o controle de muitos feudos, tinham muitas cabeças sob seu comando. Um nome que certamente fazia temer.

"Rio pedregoso" era a placa que estava sobre toda casa sob o comando deles, Susumo Ishikawa, o líder atual da família fazia questão de estampar isso em todo lugar, "rio pedregoso" era afinal o significado do nome Ishikawa:

- Eles temerão a nós, como um barco deve temer as rochas escondidas no rio, estaremos por toda a parte. - Susumo era rico desde que nascera, assim como seu pai e seu avô.

Os três capangas entraram no poço de pedra, o maior deles urrava de ódio:

- Buscaremos aquela mulher, em todos os vilarejos, de todos os feudos, se estiver fora do nosso alcance iremos contatar outras famílias! - Gritava e andava para cima e para baixo.

- Isso dificilmente vai dar em algo. - Disse o mais esperto. - Somos reles capangas, não entende? Nós ao menos conhecemos Susumo-san.

Bufou para retruca-lo, a tempo do mais baixo dizer:

- Podemos ir por conta, não irá fazer mal se sairmos por algumas horas. - Disse. - E dessa vez iremos preparados. - Apontou para a faca na cintura.

O homem torto riu com os dentes amarelos.

...

Aiko fechou o portão da pequena fazenda e virou-se para a casinha:

- Chegou na hora certa! - Recebeu a irmã mais velha com um abraço.

Essa sorriu e acompanhou o jovem até seu avô, entregou as moedas, que eram poucas e decidiu ali, pelo bem de todos, não contar sobre o ocorrido com a família Ishikawa.

Agradeceram o alimento, Takashi serviu os peixes que havia pego há poucos minutos, bem cortados e fresco. Fecharam os olhos por um momento e começaram a comer, em silêncio.

Terminaram, Aiko esperou seu avô se levantar e levantou-se em seguida, Seiji foi o último, limparam todos juntos a sujeira do almoço:

- Vou meditar e cochilar a tarde, façam bom proveito do dia. - Disse Takashi atencioso e sorrindo.

Aiko e Seiji foram ficar um tempo com os animais, a moça foi aproveitar o belo dia que fazia para limpar o cavalo, era como se nada tivesse acontecido anteriormente, ela treinava a vida inteira com a espada, uma arte que seus pais passaram e seu avô havia aperfeiçoado na garota, que mesmo nova já manejava a espada.

Aiko terminou e soltou um pouco o pangaré, que corria pela pequena fazenda livremente, voltou sua atenção para Seiji, percebendo que o irmão mais novo tentava encarar o sol:

- Seus olhos vão ficar secos. - Disse Aiko, sendo doce com o irmão.

Ele sorriu:

- Ele é mesmo muito poderoso... - Disse Seiji, Aiko percebeu do que aquilo se tratava e mudou o foco.

Seiji percebeu e ficou em silêncio, talvez a irmã não quisesse conversar com ele, pensou.

A moça foi repor a comida de todos os animais da pequena fazenda, bodes e cabras, ovelhas e o cavalo, não viu Seiji mais aquela tarde.

A família Ogawa nem sempre foi composta apenas pelos três membros, nem sempre moraram naquela região.

Ogawa significa "rio pequeno", pois moravam em regiões montanhosas no extremo norte onde somente rios artificiais corriam, em um local onde nenhuma família oligárquica comandava, um pedaço fora do caos. Foi nesse cenário que Aiko nasceu, longe das espadas e de desgraça, porém seu pai logo fora convocado a uma guerra, uma guerra que não pertencia a eles, uma guerra perdida, e se formaram os feudos pouco a pouco, onde generais dessas famílias imensas comandavam como ditadores, lugar onde apenas os mais fortes sobreviveriam.

A família Ishiwaka ficou com a parte sul do império, o reino de rios e mares, onde havia hoje a maior concentração de pessoas pobres e fracas, onde empunhar uma espada significava acima de tudo, sobreviver.

Takashi percebendo a situação reviveu o antigo dojo de sua infância, construindo um lar na fronteira sul e leste, onde estariam o mais afastados possível do caos, mas sabia... No fundo sabia que um dia a história se repetiria.

E por isso a tarefa de Aiko era treinar a arte da defesa pessoal com a katana para o pequeno Seiji, que acima de tudo, obedecia os mais velhos.

"Lembre-se, a katana acima de qualquer coisa é um escudo, use-a para defender, nunca suje suas mãos... Pode ser seu fim."

As palavras de Takashi ecoavam na cabeça de Aiko, ela tinha isso firme em sua mente e queria passar para seu pequeno irmão, para que fizessem sua parte em acabar com o ciclo interminável de violência:

- Seiji, vamos. - Mandou a irmã, se dirigindo ao dojo no começo da tarde.

O garoto consentiu, pegando sua espada de bambu e seguindo a irmã.

Treinaram até escurecer, com movimento suaves que aumentavam o ritmo conforme o tempo.

...

Estavam suados quando o treino terminou, saíram para beber água do riacho, sentaram juntos e ficaram em silêncio um tempo olhando para o ceú que estava limpo e estrelado:

- Aiko, posso te perguntar algo? - Seiji olhava a irmã nos olhos.

Aiko sabia o que viria, suspirou e consentiu:

- Por que pareceu chateada quando fiz menção a falar sobre o combate de Kiichi e Kenjirou?

Se olharam por um longo tempo até que Aiko voltou a encarar o céu:

- Sabe... Eu me lembro ainda da nossa casa, em cima das montanhas... - Aiko parecia distraída quando disse isso, quase como se conseguisse voltar sua cabeça para aquele tempo.

Seiji abaixou a cabeça, a irmã continuou:

- Eu fico triste de você não ter conhecido aquela casa Seiji... Nem nossos pais... - Aiko cerrou os punhos, Seiji pôde sentir a angustia em sua voz.

- Aiko... Não precisa contar se não quiser... - Disse honesto o irmão mais novo.

Os olhos de Aiko se encheram de lágrimas:

- Seiji... Nossos pais foram assassinados, como você já sabe... - Aiko voltou os olhos para o irmão.

Ele consentiu, muito sério:

- O fogo... - Disse ele, repetindo a história que seu avô contara.

- O ji-chan não contou da onde veio o fogo e o impacto que não só matou nossos pais mas como o vilarejo inteiro... - Disse Aiko.

Seiji olhava a irmã com feições de homem, estava sério:

- Kiichi e Kenjirou... - Disse Aiko. - Eu presenciei uma batalha entre os dois.

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"Era uma tarde como outra qualquer... A não ser pelo vento forte, o que ali era bem diferente, estávamos praticamente atrás de uma montanha, dificilmente o vento soprava daquela forma, lembro que todos entraram em sua casa mais cedo, todo o vilarejo era da nossa família, todos Ogawa.

Vô Takashi se despediu de nós, eu, você ainda recém nascido e nossos pais, morávamos em casas diferentes. Lembro da mãe colocando você no berço e do pai lendo um pergaminho, sentado na janela, estava escurecendo... Eu comecei a comer um prato de arroz fresquinho, os peixes dali eram muito bons mas raros... Lembro do sabor daquele arroz até hoje, eu tinha a sua idade mais ou menos.

Tudo aconteceu como acontece em um segundo movimento de uma sonata... Primeiro um movimento rápido, um estampido... Como se alguém gritasse de repente na calada da noite... A primeira coisa que vi foram pedaços de madeiras voando, saindo da parede... Uma lâmina... Um borrão azul...

O segundo movimento da sonata, lento em forma variadas... Saímos da casa a tempo de vê-los, senti uma suspensão de realidade, um demônio vermelho, imenso, atacava com uma lança que cuspia fogo... Um ser de olhos brancos, uma fita azul saltava de sua cabeça, assim como suas roupas azuis, atacava com uma espada que uivava a cada golpe desferido.

As variações dos golpes destruíam pouco a pouco nossos sonhos... E ai começou o terceiro movimento, uma dança... Que começava a deixar vítimas por onde passava, a cor agora era vermelho gritante, onde olhávamos só enxergava sangue, em minhas vestes, no meu cabelo... O pai pegou você e entregou para a mãe, e nós três corremos... Nosso pai foi até os dois colossos que se enfrentavam no campo de batalha, não pude ver o que aconteceu em seguida, nossa família toda corria, as pessoas caíam pouco a pouco...

Ji-chan Takashi apareceu, nossa mãe preocupada com nosso pai entregou você a ele e sumiu nos estilhaços, pude ver quando um golpe de vento a derrubou, um golpe sem remetente e sem misericórdia... Gritei como nunca, Takashi tentou me conter mas eu corri até o topo do cume, eu precisava Seiji... Precisava ver... Precisava marca-los... As lágrimas explodiam para fora, meus dentes rangiam, o que tava acontecendo afinal...

Foi quando presenciei o último movimento... a peça terminou com um "allegro"... As duas figuras estavam paradas, cada um de um lado das ruínas de uma vila inteira, se fitaram, prepararam suas armas lentamente, e de forma energética desferiram cada um seu próprio golpe no outro, pude ver claramente, de cima... Eles deram fim em todos nós Seiji... Os únicos sobreviventes daquele massacre gratuito foram nós três...

Eu presenciei a batalha do Sol contra o Céu..."

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Pedro Kakaz
Enviado por Pedro Kakaz em 15/09/2016
Reeditado em 20/09/2016
Código do texto: T5762048
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