Para você... em cinza

O corpo que acabara de se erguer fora golpeado violentamente pela brisa da manhã. Recompondo-me, senti a areia fria entre os dedos dos pés descalços, além do leve toque das ondas matinais em meus calcanhares. Eu vi as cores do dia mudar. O sol que acreditava ser poente agora queimava minha pele com seus raios esmeralda. Eu vi o som do nada penetrar meus ouvidos surdos. Eu vi.

E mesmo que gritasse para o onipresente que tudo não passava de um sonho, mesmo que sussurrasse incontáveis vezes que tudo não passava de uma continuação sem graça do que já fora vivido, mesmo que buscasse na ilusão de uma miragem no horizonte a forma daquilo que tanto procurei, nem mesmo assim, nem mesmo aqui, eu me sentia em paz.

Se lhe perguntassem, “como sabes que existe?”, o que responderia em retorno? Qual seria sua conclusão diante da inevitável questão que rondará sua mente? Como perceber a existência sendo sua, em meio a uma imensidão de reflexos em espelhos? O que é seu? O que é?

Ao largo, vê-se a lanterna guia dos marinheiros perdidos. Dando boas graças e desejando apenas com sua presença em si boa-venturança a quem até ali chegar. O barqueiro a vê, a segue, como ultima esperança na bruma. Lá vem ele. Lá vem ele. A quilha rasgando ondas como a tesoura na mão do exímio alfaiate. A madeira polida do casco que convida os perdidos de espírito a se deleitar em uma nova jornada de aventuras por terras longínquas. E no comando daquela nave, o velho com seu chapéu de palha e roupas simples espera que pagues o devido preço pelo recomeço.

Eu vislumbro seu olhar distraído, enquanto este ancora no píer de tábua corrida. Eu perscruto bem no fundo daqueles olhos azuis o sinal de paz e de “que tudo irá ficar bem”. Eu confio nele. E deixando as velhas vestes que carreguei por todo o caminho cair, abandonando aquela vida de dúvidas e questionamentos que me torturou até o celebre momento do nó apertado, ignorando o que vivera e viverei, eu jogo a moeda de ouro àquele meu novo companheiro, e deixo que as águas calmas me levem em segurança à jornada dos desconhecidos. Assim, nu. Sem pretensões, sem por quês, sem expectativas nubladas, apenas o céu límpido.

E para você, que tanto vislumbrei em sonhos de loucura. Para você, que por tanto tempo me guiou em suas palavras doces. Para você, que quando perdido na penumbra, eu servi de muleta. Para você, deixo minha voz.