O Anjo da morte
O dia em que Ângelo descobriu o seu poder foi o mais triste de sua vida. Lembrava-se com detalhes, na época tinha uns oito ou nove anos, sua avó já estava hospitalizada por um longo tempo. Sempre ia visitá-la, mas naquele dia foi diferente. A avozinha parecia tão pequena e frágil na cama, parecia tão cansada e sem forças, ele então segurou suas mãos e perguntou:
- O que a senhora quer, vózinha?
Ela olhou em seus olhos e disse com um sorriso triste:
- Só quero descansar, meu filho, voltar para Deus.
Ele não entendeu completamente o desejo da avó, mas seu dom sim, em um instante sua avozinha se despedia desse mundo, ainda segurando em suas mãos. Inconscientemente se culpava pela morte dela mesmo não tendo noção de seu dom ainda, só mais tarde descobriu realmente que podia dar descanso às pessoas que não tinham motivos ou forças para continuar vivendo.
Passou muito tempo para que Ângelo voltasse a entrar em um hospital. Relutava em aceitar seu dom, não esquecia as vidas que tinha tomado, seus últimos instantes, seus olhares melancólicos e suas súplicas mudas por um fim. Fazia de tudo para ficar longe de doentes terminais, idosos, pessoas deprimidas e suicidas em potencial, mas essas pessoas pareciam ser atraídas para ele como mariposas para a luz.
Quando entendeu que o que fazia era libertar as almas de corpos doentes e debilitados, começou a se concentrar em quem mais precisava dele. Passou a visitar asilos e hospitais, pesquisava os pacientes em estado terminal, aqueles que haviam desistido de lutar pela vida, aqueles que haviam sido vencidos pela dor e pelo sofrimento e simplesmente segurava suas mãos e libertava-os.
Logo se tornou conhecido nos hospitais, alguns proibiram a sua entrada, abriram inquéritos para descobrir como ela matava as pessoas, mas nunca encontraram nada que pudesse incriminá-lo. Coincidência ou até bruxaria, cogitaram tudo, mas nunca mais permitiram que ele entrasse nesses hospitais. Em outros, sua presença era vista com bons olhos, como um alívio para os pacientes desenganados. Ainda assim, todos que sabiam do seu dom gostavam de manter uma distância segura do rapaz.
Um dia, andando pelos corredores do hospital ouviu um som diferente, som de riso, alegre e espontâneo, seguiu o som e acabou parado na porta do quarto onde se encontrava uma moça deitada na cama vendo um programa de humor na TV. Ficou observando por alguns segundos até que a moça o notou.
Quer assistir comigo?
Não, obrigado. - Respondeu rapidamente e foi embora quase correndo.
Seu coração batia descontrolado. Nunca se sentira tão atraído por alguém, embora a moça aparentasse estar muito doente, notava nela uma fome pela vida, um intenso desejo de viver e isso o fascinava.
Ele mesmo nunca teve um amor intenso pela vida, nenhum motivo específico para viver, vivia pelo mero fato de estar respirando e seu coração continuar a bater, dia após dia.
Por esse motivo viu a fome apaixonada da moça pela vida como uma coisa extraordinária. Não tardou a fazer uma ronda no quarto dela.
Logo fizeram amizade, daquele tipo que só se faz uma vez na vida, que é eterna e se transforma facilmente em amor. A medida que o amor entre eles florescia, a saúde dela melhorava, em um piscar de olhos conseguiu entrar na fase de remissão. Ângelo nunca soube que o amor podia curar, mas logo saberia que ele podia matar.
Casaram-se em um dia ensolarado, em uma cerimônia simples e intimista. Luana, agora a esposa, acabou descobrindo o dom do marido logo na lua de mel, onde encontraram, por acaso, um senhor idoso, sem família e sem amigos, que morava em uma casinha suja, mal cheirosa, cheia de garrafas vazias e restos de comida estragada. Ângelo exitou, não havia sido sua intenção esconder seu dom da esposa, só não sabia como explicar. Decidiu que o melhor seria que ela mesma testemunhasse.
Pararam então para conversar com o idoso e logo descobriram que desde a morte de sua irmã mais velha que ele não encontrava mais razões para viver, os dois sendo solteiros, haviam cuidado um do outro a vida toda e agora, sem ela, ele se afogava no álcool e esperava a morte, que, segundo ele, estava tardando muito a chegar.
Ângelo então segurou suas mãos sujas e perguntou o que ele queria de verdade.
- Eu só queria estar ao lado dela novamente, estou cansado de viver aqui sozinho, não posso mais viver assim.
Na mesma hora amparou o idoso que caía morto em seus braços. Luana ficou em estado de choque, chorou a tarde toda, custou a entender realmente o dom do marido, mas quando a surpresa, o choque e a descrença passaram ela acabou entendendo ainda mais a natureza melancólica e meio soturna dele.
Foi Luana quem o apelidou de Anjo da morte. Passavam horas conversando sobre seu dom e ela ajudava-o a encontrar pessoas prontas para a passagem há tempos que não aguentavam mais esperar. Ela especulava como ele havia recebido esse dom, se ele realmente era um anjo, imaginava até que ele poderia ser imortal, mas ele não tinha resposta para nenhuma dessas perguntas, na verdade nunca soube quem o que realmente era.
Alguns meses depois a vida do casal ficou completa, nascia uma menininha que fez Ângelo se apaixonar de vez pela vida. Não tinha mais tempo nem disposição para exercer seu dom, se concentrou de corpo e alma em sua família. Sofia era linda de corpo e de alma, uma criança feliz, carinhosa e esperta, iluminava a vida de todos ao seu redor, tinha o dom de trazer vida e felicidade a todos que cruzavam o seu caminho.
Antes que a criança completasse cinco anos um motorista bêbado subiu na calçada e atropelou mãe e filha que acabavam de sair da sorveteria. Ângelo estava em casa quando o telefone tocou, a notícia abalou profundamente seu mundo. Seu coração partiu em milhões de pedacinhos, nada no mundo poderia fazê-lo inteiro novamente. Foi então que entendeu como era libertador e precioso o seu dom, imaginou em uma fração de segundos como seria ter que continuar vivendo quando seu coração já estava morto. Felizmente não teria que passar por isso. Seu dom então libertou a última alma.