Narciso Cego

o universo pesava como um livro de história, pois carregava a história de tudo até o presente momento, - causas e efeitos. - e tudo existia e ficava-se perplexo pela maquinaria que funcionava o mundo e tudo que existe. instinto era um nome muito antigo, de tempos em que o sol nascia para ver ninguém, para o que atualmente se chama de automatismo (sua genética parental está no último "o"). de momento a momento assustava-se ao imaginar a vida dos seres que, antes, comiam e bebiam e choravam suas dores; incontáveis seres à procura do seu caminho diante do universo formado e sem início e continuava a se formar, em sua eterna e estática impermanência. saía de casa e agora sentia fome só de imaginar alguém faminto faminto, e permanecia até que acreditasse que essa pessoa em algum lugar distante já havia se fartado. Às vezes, numa aflição mortífera, se já não houvesse mais a mínima possibilidade de acreditar nos motivos inventados em sua imaginação, comia em remorso. na solidão que a água tem, por exemplo, a raiva dos inconscientes subia-lhe a garganta: na molécula da água um só oxigênio, solitário e ponte, quem se atenta à isso? o terrível estado de se viver à margem, no escuro, escondido pela penumbra e a observar…observar a vida. vomitava-se com a garantia de que amanhã, ao observar a vida, vomitaria novamente. e ele vomitava até se virar do avesso.

a sombra da palmeira que resistia ao sol imperador acalentava seu corpo coberto de trapos que sobreviviam à decomposição. a palmeira o lembrava de que mesmo com sede, tinha sombra. os cadáveres do que um dia foram carros tinham seu portal vitral transmitidos nos pequenos reflexos dos estilhaços, a luz se dividindo em cores, nisso a mensagem: objetos mortos que nunca tiveram vida mas viveram com sua função atribuída. algum transeunte absorto imortalizou sua passagem em textos bíblicos riscados nas laterais dos carros. "o fim é o ar que você respira, está em seu encalço", complementou. no fundo da cabeça, uma música de tempos fúteis corria, qualquer mover-se era uma melodia inventada, sinfonia do fim que se tocava com a destruição e o resto, com o desalento que a história, enviesando-se em insignificações, havia deixado. o avesso de si aos poucos aparecia: era a alma que escapava pelo corpo, música e palavra; era sua mania no ser poeta, poeta mal feito, daqueles mesmo que falam de como é escrever. mas seu dom era imaginar, odiava na verdade materializar seu poder imaginativo. conseguia dormir por dias sonhando a mesma história, com seus capítulos e clímaxes. Até que o fim inevitável do êxtase passasse.

se o sonho lhe faltava, então a realidade voltava-se toda perversa, a mostrar-se nua, deixando que o sangue escorresse e mostrasse o branco do osso. e não encenava, mas causava efeitos teatrais para favorecer suas feridas expostas. e descia o sangue podre e saudável, até que o líquido virasse pó. e o pó se sopra, soprado voa, voando viaja e viajando se vai longe como a voz de alguém que morre aos poucos e se dispersa no universo, onde o tempo não é contado. e sem o lugar de tempo encontra-se o amor. e então se existe. e a vibração de qualquer ordem existe um existir penetrante, cada um com o inominável. é proibido nomear. impossível de se sentir. é não se vivendo que se acessa e num segundo desaparece o segredo das profundezas do décimo quarto oceano que é transmutação do vômito universal. e escutava esses pensamentos como algo que vinha direto da sombra, algo hermético sendo proferido. despertou de um sono sentindo ansiedade, e realmente havia um som, que do escuro declamava seus terrores: sabia com a certeza de que se existe, que não era fantasma, não era um demônio e também não era Deus. esse som estava além dos domínios espirituais, mesmo que sua silhueta de som insinuasse criação. as vibrações escuras lhe moviam o sangue entre as veias, à inaudível música sentia-se no seu inteiro medo. ali admirava-se, com o frescor do reflexo que nascia e do vazio. se ao menos deduzisse, se perderia. Deve-se ficar em completa quietude…e tinha relances do todo, do universal e era grande e pesado demais para sua alma desesperada, e numa súbita agonia de aversão, o tudo desapareceu, repulsa. a alma repreendia-se a si mesma, sua própria imagem causava-lhe espasmos, por isso morria. O encontro primordial do vazio do vazio com o vazio perfeito do silêncio: havia o som do vento silente como um grito que falha e perde-se na garganta.