O Reflexo de Um Sonho

Eu, esta noite, tive um sonho

Sonhei que um peso enorme era tirado de mim. Deu trabalho mas conseguiram. Duas pombas brancas se encarregaram do serviço, feito com sucesso, diga-se de passagem

E então a vida, de repente, ficou mais leve

Eu enxerguei além de olhar

Eu escutei além de ouvir

Eu provei além de ingerir

E eu pude distinguir

E pude escolher

De repente enxerguei a vida, como um míope enxerga pela primeira vez depois de colocar seus óculos novos

Escutei, como um surdo escuta ao colocar pela primeira vez seu aparelho de surdez

Provei, como alguém que está com sede há muito tempo, prova um copo d’água

Distingui, como alguém sensato distingue, o que é plausível e o que não é

E escolhi, enfim, como alguém centrado escolhe, após analisar e verificar os pontos práticos e claros, o que é mais adequado ao seu propósito

De repente o abstrato se tornou concreto, o quebra cabeça se uniu, e parece até que os pingos d’agua voltaram todos pra dentro do copo, tamanha foi a sensação de leveza que senti

Tudo estava em seu lugar, nada mais flutuava

Os sons estavam todos harmônicos, nenhum gritava, nenhum tentava competir pra ver quem falava mais alto

Não, eles não brigavam, eles estavam em paz

De repente todos estavam em paz

O mundo estava em paz

Eu estava em paz

Nada mais me doía, nada mais em mim gritava, nada me incomodava nem me angustiava

As brigas e bobagens da vida, eu pude solucionar

As coisas deixadas pra trás, eu simplesmente voltei, recolhi, resolvi e eliminei

O que não teve solução abandonei, e não voltei pra remexer em nada. Não. De jeito nenhum. Tudo foi levado pro almoxarife no fundo à direita do corredor de minha mente e lá ficaria para sempre, após adquirir um tom escurecido, envelhecido, quase preto e branco, pra ser consultado de vez em quando, apenas como aconselhamento, na sessão denominada “Coisas que não deveriam ser repetidas”

Se surgisse um imprevisto, eu podia analisar os fatos, pesá-los igualmente e então tomar a decisão mais adequada

Diante de uma dúvida, eu poderia escolher, é claro, isso é tão óbvio

E se algo não me despertasse interesse, mas talvez fosse necessário fazê-lo, eu faria. Certamente. Já que é preciso, a solução é fazer, claro. Será que isso não está tão nítido como dois e dois são quatro

Puxa vida. Dois e dois são quatro. Ontem o resultado era sete, antes de ontem oito, e ante anteontem deu seis. Como isto era possível? Agora é quatro, de tarde será quatro, amanhã será quatro e depois de amanhã também será quatro. Nada de exato mais será mutável

Tudo estava leve, limpo, real

As gralhas cantavam no mesmo volume e no mesmo tom. Elas pararam de discutir, brigar entre si

Tudo estava em seu lugar

Tudo estava harmônico

Tudo estava em silêncio

Ter aquele peso tirado de meus ombros parece que me libertou

Também pudera, estive olhando pra ele. Lá dentro encontrei tantas coisas

Brigas que poderiam ser evitadas com uma simples escolha prática

Mágoas que seriam sanadas apenas com um telefonema, uma resposta à uma mensagem, uma simples explicação, ou apenas simplesmente falar em vez de ficar em silêncio

Emitir um NÃO em vez de um SIM, ou um SIM em vez de um NÃO, com tanto que fosse o que de fato queria ser dito

Lá dentro eu também vi, e isso, sim, me doeu

Planos, muitos planos

Objetivos magníficos que não foram levados adiante

Ideias fascinantes que não saíram do papel

Coisas importantes que não foram feitas porque se perderam entre inúmeras anotações, memorandos e lembretes

Agendas que foram preenchidas, mas jamais revistas e cumpridas

E mesmo estando em um sonho, eu vi outros sonhos

Muitos sonhos

Ah, muitos mesmo

Sonhos que se perderam pelo caminho...

Que ficaram à mercê de um turbilhão de muitos e muitos e muitos outros sonhos

Sonhos estes que na ânsia de serem realizados, acabaram por se acabar

E o pior, ao se acabarem, não se desintegraram por completo

Deixaram um traço de lembrança pra ser revisitada pro resto da vida, como sobras e escombros do que poderia ter sido e não foi

Ao olhar pra esse peso todo eu só consegui foi questionar:

Que tortura é essa?

Que dom mais contraditório é esse que me foi dado?

Nele eu tenho a capacidade e a criatividade de sonhar, de maneira solta, tudo o que meu coração consegue conceber

Criar o que ninguém consegue

Ver o que ninguém vê

Distinguir o som que ninguém ouve

E sentir o que só minha pele é capaz de sentir, à flor dela própria

Que estigma mais masoquista. Tenho a capacidade de sonhar tudo o que o mundo oferece. Mas uma aparente incapacidade de colocar em prática tudo o que meu coração sonhou.

Ao olhar praquele peso todo, só consegui foi sentir, lá no fundo da alma, uma sensação de impotência, tão grande diante da vida, que me fez cair. Eu me senti, por um segundo, terrivelmente ameaçado pela vida

E então lembrei que o peso não estava mais em mim. E deixei que o levassem

Levaram-no e soltaram-no em cima de uma nuvem cinza que tratou de dissolvê-lo lentamente, e o fez cair em gotas de chuva ácida

E então eu fui tomado por uma paz indescritível. Uma calma como nunca antes

Eu estava ali, não na esquina

Não em cima nem embaixo

Não estava na pessoa que chegava nem na que saía

Estava em mim mesmo, de corpo, mente e alma

Foram apenas alguns minutos desse paraíso clandestino. Pois assim como os sonhos que eu havia recordado, tinha até me esquecido que eu estava, também, dentro de um sonho

De repente o alarme toca e eu acordo pra vida novamente, em meu quarto

E apesar de agora estar na realidade, em cima do meu guarda roupa avistei, novamente, as duas pombas brancas. Vieram em minha direção trazendo com elas um peso. Sim, o meu peso. Jogaram ele de volta em meus ombros, afinal ele era meu, ninguém ia carrega-lo por mim

Porém, o que eu não esperava é que traziam, além do peso, um presente só pra mim

Já estavam em retirada, mas voltaram. E puseram sobre minhas mãos um diamante lapidado. Cuidadosamente lapidado. A luz que emanou da joia me atingiu em cheio. E essa luz encheu meu coração de esperança. Sabe por quê? Porque naquele diamante lapidado eu me vi refletido, em todos os lados possíveis

Um reflexo genuíno de quem guarda dentro de si, ao mesmo tempo, todas as coisas do mundo.

Joaquim Távora

30 de julho de 2023.

Alexandre de Toledo
Enviado por Alexandre de Toledo em 07/10/2023
Código do texto: T7903244
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