NÉVOAS PERMITIDAS (alguns recantistas vão se achar por aqui)

 

Os flancos escarpados da Montanha da Névoa, atraiam olhares, desejos de escaladas e para alguns, saudades doídas, dos amores ou amigos que ficaram tatuados em suas encostas. Névoas de vidas.

 

Antônio Albuquerque e Nádia Gonçalves, eram amigos há muitos anos, adoravam os três dias por ano, que os seus digníssimos, esposa e marido lhes concediam, para dar um upgrade na adrenalina louca deles.

 

Desta vez a empreitada aventureira e perigosa, era a escalada da Montanha da Névoa, mesmo sabendo que muitos nunca voltaram de lá. Eu Cristina Gaspar, que conheço os dois e seus parceiros, nem sei responder, quem era mais doido, Antônio e Nádia ou aqueles que lhes davam três dias por ano, para arriscar a vida, ai ai ai...

 

Roberto e Mary Jun, também eram amigos dos 'adoradores do perigo' e, alertaram diversas vezes, sobre a estatística de pessoas que nunca voltaram, ficando presas em fendas afiadas, sem chance de resgate, se tornando parte da montanha. Só que os amigos borbulhavam em seus desejos loucos e ainda, tendo suas névoas permitidas...lá se foram equipados, com telefones via satélite, barras de chocolate e de cereais, dois cantis térmicos de água para cada um, as vestimentas e acessórios próprios para a escalada. Quando saíram de suas casas, foi sob as bençãos dos familiares e amigos.

 

O início da subida foi deliciosa, embora muito bem cuidada, porque um deslize mínimo, bastaria para ser atravessado por uma das escarpas afiadas.

 

A força da amizade dos dois, era tão forte, como os pequenos lagos congelados, presentes entre várias fendas. Onde estavam 'fixados', muitos do que não voltaram. Antônio e Nádia, até mentalizavam uma prece, quando avistavam as cenas e seguiam a subida 

 

Paravam de tempos em tempos, num recuo entre as pedras e, mesmo apenas encostados nas rochas, tomavam goles d'água e comiam uma barrinha ou chocolate, logo em seguida voltavam à escalada. Faltavam em torno de trinta metros bem difíceis, para chegar ao topo. O cansaço de Antônio e Nádia era grande, mas, o desejo de conquistar mais um sonho, os energizava e fazia sorrir.

 

O descuido de Nádia e o vento forte e gelado, arrastaram o corpo dela para uma escarpa pontiaguda e, se não fosse o braço forte do amigo Antônio, ficaria aderida pra sempre à Montanha da Névoa. Foi um enorme susto, ambos olharam para o céu azul e agradeceram.

 

Restando mais ou menos dez metros, para o fim da saída anual permitida. Pequenos laguinhos gelados apareceram, Antônio perguntou para Nádia

- Você ouviu a voz?

Ela respondeu

- Que voz? Eu não falei nada

Só que ele ouve de novo um gemido e volta a falar

- Você não está ouvindo? É um gemido...Ouça! Ouça!

Nádia não ouve nada e fala para Antônio

- Amigo, deve ser o cansaço, não tem gemido algum

Antônio continua ouvindo gemidos, se afasta de Nádia sem aviso, vai em busca da voz que ouve, através de escarpas perigosas, que lhe arranharam os braços, rasgando o tecido, Nádia preocupada não segue o amigo, porque onde ela estava as fendas eram estreitas e, ficava difícil seguir em frente, a sua vontade era descer, no fundo do peito um medo por enquanto pequeno, crescia...e não via mais Antônio.

 

Ouviu um grito rouco, começou a gritar

- Antônio Antônio Antônio!!

Gemidos...a voz parecia ser a dele, Nádia se desesperava. Ir procurá-lo partindo de onde ela estava, era risco de vida. Dentro da mente dela, um misto de sentimentos, medo, culpa, ansiedade...tentou chamar socorro pelo telefone via satélite, conseguiu o contato, mas, as respostas vinham truncadas, a ligação emudecia por instantes e voltava. Ela gritava por Antônio e só ouvia gemidos roucos...o medo a consumia, começou a ter falta de ar e deixou cair o telefone.

 

Parou e tentou serenar...desceu uns três metros para baixo, procurando subir por outro caminho entre as escarpas pontiagudas, na intenção de salvar o amigo, demorou quase quarenta minutos até vê-lo numa fenda estreita, com as mãos presas num daqueles lagos congelados. Ela gritava por Antônio, mas, ele sequer se mexia, que dirá responder. Nádia surtava, chorava, sentindo-se incapaz...inútil. As escarpas rochosas, envolta em névoas, não deixavam ela prosseguir com segurança.

 

Ficou os pés numa cavidade próxima a Antônio, tentando sentir se ele estava vivo...infelizmente não conseguia chegar até ele. O rosto dele estava pálido....ele com certeza estava morto. O que se passava em sua mente, era desespero e, lhe faltava coragem para deixá-lo ali, sobrava o medo de descer sozinha.

 

O sonho deles sobre aquela escalada, ganhou cores de inconsequência. Imagens dos familiares e amigos, machucavam demais. A falta do abraço confortante do marido, lhe fazia tanta falta!!

 

Nádia sentia as lágrimas congelarem sobre o rosto, conseguira descer uns quatro metros, com muitas escoriações, então, ouve vários gemidos, pedidos de socorro partindo de várias vozes

- ...como assim?

Gritou, gritou! Estou aqui! Onde estão! Antônio! Antônio é você?. Olhava a sua volta com desespero, de onde vinham as vozes? Talvez fosse coisa da sua cabeça, por tudo o que estava passando. Seguiu descendo com cuidado, mas, tremia demais. Começou a ouvir uma voz profunda e cálida, confortando a sua alma,, tornando tudo a sua volta claro e trazendo paz. Nádia suspirou, abriu os braços e disse

- Estou indo amor! 

O corpo dela, ficou preso entre escarpas afiadas, após a queda 

 

Meses se passaram e, o resultado de todas as buscas deram negativo. As névoas da montanha, absorveram mais duas vidas.

 

 

Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 24/03/2024
Código do texto: T8026390
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