Afogarais

O corpo já estava frio quando abriu os olhos. O balançar das águas levava de um canto para outro, embalando feito um neném. O corpo quis sorrir com essa comparação.

O Sol iluminava o rosto do corpo, que sentia a pele morna. Uma mornidão confortável. Ele (o corpo) não lembrava de como havia chegado ali, no oceano, mas apreciava a falta de esforço que era boiar. Poderia ficar a vida inteira estagnado, sem se movimentar.

O corpo deveria relaxar? Não sabia ao certo. Ainda pensava muito sobre como foi parar ali. Não lembrava de nada. Talvez, apenas talvez, de um oceano escorrendo por seu rosto, mas parecia distante. Muito distante. Uma lembrança que aparentava mais um sonho do que palpável.

O corpo queria relembrar. Mas, como relembrar se não havia nada? Talvez, somente talvez, sentia que iria subir aos céus, feito um anjo. Porém, isso foi apenas um pesadelo terrível. O corpo tinha medo de altura.

O corpo sentia que sua alma iria embora se levantasse alguma das mãos. Para provar seu ponto, tentou observar a própria palma. A alma ficou. Estranho, muito estranho.

O corpo não vivenciava a própria carne. Parecia fora. Distante. Parecia um ser primitivo, fantasioso, tudo menos humano. Seria o corpo um monstro?

O corpo achava que exagerou, não, não é um monstro - apenas um peixe. Quem sabe um salmão?

O corpo estava inerte, pesado e sentia-se azul. Bem azul. A quanto tempo estava vagando sozinho, desacordado?

Talvez, somente talvez, ele quis estar ali, em meio a todo o oceano, derramado e diluido com a água. Talvez tenha achado complexo demais ser humano e quis ser um peixe. Talvez tenha visto a Lua refletida no mar e lá quis estar.

Não, o corpo nunca faria isso (ou faria)?

Não, o corpo não seria capaz de fazer isso (ou seria?)

Não, o corpo não queria fazer isso (ou queria?)

A palavra indomável, sem escrúpulos, agora escorria de sua língua, e o corpo, que antes estava no mar, agora não está mais. Numa cama de hospital, talvez?

Deitado numa maca, talvez?

Não. Impossível. O corpo nunca, jamais, em hipótese alguma, teria desistido (ou teria?)

A pele desazulou. Porém, a verdade, ela se manteve. E ela machuca, e machuca demais: O corpo, o tão cansado corpo, o tão triste, melancólico, exausto corpo, está vivo e respira. E como, como respira. Respira como nunca antes respirou.

(Ismália - Alphonsus de Guimaraens)