SOLIDÃO

SOLIDÃO

Quarta feira dia treze de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima. Aniversário da Lei Áurea. Dia em que meu pai morreu. Morreu para o mundo, não está mais aqui fisicamente. Perdi meu mentor, talvez uma das poucas pessoas que eu pudesse respeitar pela inteligência. Talvez o meu grande ídolo, em quem me espelhava, em quem me inspirava. Pela mamãe tenho grande amor, respeito, ela me orienta, me norteia, me moraliza. Por meu pai tinha mais que amor e respeito, havia admiração, idolatria mesmo.

Escrevo por saudade, por desespero, por estar sozinha, mesmo sabendo que tenho grandes amigos por perto. Esta grande fragilidade que sinto, sinto por ter magoado a quem mais respeitava pelo meu amor carnal com quem lutei tanto por aprovação. Sinto um pesar enorme, um vazio, pois este meu amor não está comigo como pensei. Acho até que tenho seu amor, como tem o meu, profundo, mas não reconheci ainda o companheiro, não há cumplicidade. Não sei se haverá algum dia.

A vida é engraçada, nunca se tem o que se quer exatamente, não me satisfiz, não sou exceção. No entanto, deve haver alguma regra de compensações: assim que meu mentor desencarnou, como que sonhando acordada, ele esteve comigo. Estivemos juntos por umas duas horas. Sabe como quando você arruma uma estante de livros, os organiza, automaticamente, e ao mesmo tempo bate um papo com alguém sentado às suas costas, divagando ambos em períodos alternados?

Assim ele me disse:

_ Estou me despedindo, vim ver você, não queriam me deixar, mas vim assim mesmo. Como vai ser agora? E a sua mãe e irmãs.

Respondi como quem não presta muita atenção:

_ Elas ficarão comigo, estaremos juntas, vai descansado. Ainda me lembro da aflição dele, queria ficar e já não mais podia.

Na verdade durante o tempo em que nossos espíritos estiveram juntos, não havia barulho, nem perturbação, não havia tempo. Sei que ficou me fazendo companhia por umas duas horas, pelo horário em que foi relatado seu desencarne. Ficou comigo até umas seis horas, seis e meia da noite quando ele disse que precisava ver minha sobrinha, sua neta nascida há cinco dias. Ele a viu por foto na UTI cardiológica.

Minha irmã conta que estava dormindo com o bebê nesta hora e que sonhou que ele havia ido visitá-la, ver a criança. Não sei bem o que conversaram.

Duas horas e meia após estar com ele, recebi a notícia que ele “tinha piorado”, que minha mãe nos chamava ao hospital, mas que não era para ligar para minha irmã, pois seu marido havia pedido que não a preocupássemos.

Tentei localizar meu marido, não o encontrei, celular desligado, não estava com conhecidos. Liguei para minha sogra e pedi a ela que ficasse com as crianças para eu ir ao hospital. Meus sogros, benditos sejam, nos apanharam, deixaram minhas meninas com minha cunhada e fomos ao hospital. Eles já estavam avisados, meu tio havia ligado para eles também. No hospital, soube do falecimento e que o corpo já tinha ido para o Parque da Saudade. Chorei um choro manso, como já tinha dito a eles sabia que este seria o desfecho, gentilmente meu pai me avisou. Eu estava em paz. O que mais marcou porém foi a expressão do meu pai morto. Parecia que havia feito grande esforço e que estava extenuado e também penalizado.

Meu marido chegou mais tarde, quando provavelmente não me encontrou em casa e ligou para casa de minha sogra.

Fiquei ali, com minha mãe e irmã, meus sogros, que só me deixaram quando Nautilos chegou. Foram ver as meninas. Minha irmã não parava de chorar. Um choro que aos dezenove anos suscitaria tristeza, desespero, mas também havia ali agradecimento. Meu pai agora estava livre da doença, da dor, do corpo que não mais podia acompanhar seu espírito.

Sábia menina, mais que nossa outra irmã que não aceitava a perda de nosso pai. Talvez dentre todas, eu fosse a mais agraciada pela sorte. Eu o percebi junto de mim. Despedi-me dele.

Um ano antes, em uma visita que fiz a ele, durante um período de internação, olhei em seus olhos baços, olhos de moribundo e notei que a morte já se avizinhava. Ali, eu pedi por ele, pedi que lhe fosse dado mais tempo, que ele ficasse mais um pouco conosco. Um pedido de minha alma, que na mesma semana foi atendido. Só uma vez me lembro de ter feito semelhante pedido, em ambos com semelhante oferta: empenhei minha energia vital a ele e também à minha mãe, uns dezoito anos antes. Ela estava morrendo de apendicite, era inoperável. Minha avó vendo que eu não me aproximava dela, chamou-me a atenção dizendo que ela estava no fim, todos estavam terrivelmente preocupados, eu não, sabia que ela não iria naquela hora e eu fui vê-la, conversei com ela, perguntei se queria algo, se sentia dores e lhe dei um beijo terno, quente, carinhoso.

Ela está conosco até hoje. A minha solidão o vazio, passou, só ficou uma imensa saudade.