No carrossel do passado> Autor: Damião Metamorfose.

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01=I

Nasci no meio do mato,

Na época da ditadura.

Morando em casa de taipa,

Vivendo da agricultura.

Meus pais eram escravos brancos,

Sem recurso e sem cultura.

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02=II

A vida era muito dura,

Trabalhando de roceiro.

O patrão mandava em tudo...

Porque a gente era meeiro.

Meeiro pra quem não sabe

É a metade de um inteiro.

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03=III

Naquele tempo, o dinheiro,

Era uma raridade.

Gente da classe da gente,

Passava necessidade.

Inda mais ganhando pouco

E outro levando a metade.

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04=IV

Mesmo assim sinto saudade,

Daquele tempo cruel.

E é por causa desta dita

Que eu rabisco esse papel.

Pra contar em prosa e versos

O meu passado em cordel.

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05=V

Saudades do Pimentel,

Um óleo de algodão.

Que às vezes meus pais compravam,

Pra temperar o feijão.

E aquele arroz linguento

Que era pisado em pilão.

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06=VI

Da calça Mané rusgão,

Terilene e tropical.

Caqui e arranca toco,

De gabardine e tergal.

Que eu achava parecido,

Com a farda policial.

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07=VII

Em vez do açúcar cristal,

Usava-se rapadura.

O café comprado em grãos,

Torrava-se sem mistura.

A água era de cacimba,

Barrenta, mas era pura.

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08=VIII

Um pedaço de gordura

De porco, era pendurada.

Encima de um fogão,

Para ficar defumada.

E a carne não consumida,

Num pote era empilhada.

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09=XIX

Lá em casa, na latada,

Tinha um banco de madeira.

Não lembro bem do que era,

Se angico ou aroeira.

Só sei que sentavam uns dez

E a nossa família inteira.

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10=X

Um pote era a geladeira

E o armário era um jirau.

As redes eram tecidas

Em tear, de corda e pau.

Cama eu só me deitei numa,

Quando fui pra capital.

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11=XI

Transporte era em animal,

Bicicleta era pra rico.

A gente andava a pé mesmo,

Até comprar um jerico.

Levei tantas quedas dele,

Que dói, se lembrando eu fico.

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12=XII

Sanitário, era um pinico

De ágata, o nosso era barro.

Se alguém tava namorando,

Dizia-se: encostar carro.

E o ficar de hoje em dia,

Naquele tempo era um sarro.

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13=XIII

O papelim de cigarro,

Era quase um papelão.

O fumo era de corda,

Preto da cor de carvão.

Fumava pai, mãe e filhos,

Vejam que situação.

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14=XIV

O sabão era o pavão,

Pedra amarela e azulada.

Se quarasse muito tempo,

Além de esbranquiçada.

A roupa ficava dura,

Puída, quase rasgada.

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15=XV

Decoada era preparada,

Com cinza de vegetais.

Boa pra lavar panelas,

Prato, colher e cristais.

E o contato prolongado,

Corroia as digitais.

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16-XVI

O jacaré era o gás,

Que se usava em lampião.

O fogão era uma trempe

De pedra ou feito a mão.

A panela era de barro,

Mais preta do que o cão.

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17=XVII

Quem tinha lâmpada a bujão,

Raramente acendia.

O rádio era o Nordson,

Pra se ouvir cantoria.

Ou ABC voz de ouro,

Que de longe se ouvia.

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18=XVIII

O milho a gente moía

Moinho, fama ou mimoso.

Para fazer curau, canjica

Ou um cuscuz bem gostoso.

Hoje já vem quase pronto,

Mas tem sabor duvidoso.

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19=XIX

Das histórias de trancoso,

Que eu sempre escutava.

Tinha o Pedro Malas-arte

E o João grilo que aprontava.

Saci, bruxa e curupira...

Que nem sempre me assustava.

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20=XX

Gripe a gente curava,

Com chá ou uma fusão.

Ou um lambedor de ervas...

Para limpar o pulmão.

Pra febre era Novalgina

E Ambracinto era a injeção.

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21=XXI

Tinha o jeep bernaldão,

Duas portas e alongado.

O bozó com duas portas,

Que até hoje é usado.

E o jipão com quatro portas,

Limusine do passado.

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22=XXII

De misto era chamado,

O que hoje é o caminhão.

Com cabine de madeira,

Muito usado em lotação.

Para levar os romeiros,

De Padin Ciço Rorão.

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23=XXIII

Se alguém deixava o sertão,

Pra são Paulo, capital.

Ia num pau de arara,

Sentado em banco de pau.

Durava um mês, a viagem,

Mas pra época era normal.

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24-XXIV

Pra comprar farinha ou sal,

Tinha que se antecipar.

Pois podia levar meses,

Pra encomenda chegar.

Porque em lombo de burros,

O tropeiro ia buscar.

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25=XXV

Sandálias para calçar,

Vou citar duas aqui.

Courrilepe, pneu, couro,

De borracha, a vakiki.

Courrilepe ainda existe,

Vakiki, nunca mais vi.

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26=XXVI

Tomar um chá de pequi

Ou uma surra de picão.

Era muito natural

Se ouvir aqui no sertão.

Hoje pode dá cadeia,

Pois pensam que é palavrão.

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27=XXVII

Alforje ou matolão,

Virou mochila hoje em dia.

A mala era de madeira,

Um sozinho não podia

Aluir ela do chão,

Com duas chaves se abria.

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28=XXVIII

Samba-coité se ingeria,

Pra azia e arroto choco.

Para expulsar o sarampo,

Um chá de fulô de toco.

E se alguém não ouvia,

Não era surdo, era “môco”.

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29=XXIX

Minha mãe ralava o coco,

Tirava o leite e fervia.

Misturava com xerem,

Em um alguidar servia.

Para a gente, era a janta,

Quase todo santo dia.

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30=XXX

Quando alguém adoecia,

De inflamação ou gangrena.

Curava com cibazol,

Tretex ou cibalena,

Pomada terramicina,

Da embalagem pequena.

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31=XXXI

Sucessos eram Malena,

Ciumenta e feiticeira,

Ciganinha e vá com Deus,

E o hit mulher rendeira.

Que lampião escreveu,

Pra sua esposa guerreira.

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32=XXXII

Ver os filmes do Teixeira,

O gaucho Teixeirinha.

Do Waldick Soriano,

Mazaropi... Ou o que tinha.

O cinema era o mercado,

Telão era uma telinha.

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33=XXXIII

Rafael era a Varzinha,

Única cidade que eu ia.

Por não ter televisão,

O mundo que eu conhecia.

Era Rafael Fernandes

E o sitio onde eu residia.

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34=XXXIV

De casa pouco eu saia

E sozinho nem pensar.

Porque era perigoso,

Um papa-figo pegar.

E se fosse pra cidade,

Na certa ia apanhar.

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35=XXXV

Quando eu fui estudar,

Na Agostinho Ventura.

Não pensava em aprender,

O bê-á-bá da cultura.

Fui por causa da merenda,

O angu da ditadura.

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36=XXXVI

Mas logo ganhei postura,

De menino inteligente.

Com seis meses escrevia

E lia o suficiente.

Era o primeiro da classe,

Sentava sempre na frente.

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37=XXXVII

Que saudade minha gente...

Do eu menino e rapaz.

Do tempo que eu não sabia,

Que o tempo era tão fugaz.

Que saudade desses tempos...

Tempos que o tempo não traz.

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38=XXXVIII

Quem dera voltar atrás,

Pra viver ao natural.

Vestindo o meu volto mundo,

Mané rusgão e tergal.

Crendo que o mundo não ia,

Muito além do meu quintal.

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39=XXXIX

No tempo em que Montreal,

Era um tênis de primeira.

Que a conga era sapatênis

E o ki chute era a chuteira.

E a mulher fazia rendas,

Cantando A mulher rendeira.

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40=XL

Do tempo em que ir a feira,

Todo final de semana.

Não era o indicador,

Que nos bolsos, tinha grana.

Porque às vezes não sobrava,

Nem para um caldo de cana.

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41=XLI

Do tempo em que ser bacana,

Era ir à cantoria.

Ou beber rabo de galo,

Recitando poesia.

Tirar gosto com torresmo

E se lascar de azia.

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42=XLII

Do tempo que o pai dizia:

Meu filho ande direito.

Não arrume confusão,

Trate a todos com respeito.

Evite o mau falatório...

E o seu pedido era feito.

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43=XLIII

Hoje eu sou pai e aceito,

O que o meu não aceitava.

Por isso eu sinto saudade,

Dos conselhos que o meu dava.

E relembro com carinho,

Das surras que eu levava.

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44=XLIV

Brinquedo não se comprava,

Porque não tinha dinheiro.

O cavalo era uma vara

De mofumbo ou marmeleiro.

O carrinho era de lata

E a pista era o terreiro.

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45=XLV

Artifício era um isqueiro,

Com pavio de algodão.

E quando apagava o fogo,

Restando cinza e carvão.

Batia uma pedra na outra,

Para acender o fogão.

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46=XLVI

Para a comunicação,

Era carta ou telegrama.

Média distancia era um grito,

Daqueles que racha a lama.

Torava o punho da rede,

Lascava a perna da cama.

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47=XLVII

Teatro escola era “drama”,

Por mais de um mês ensaiado.

O professor dirigia

O seu elenco, empolgado.

Mas quando abria a cortina,

Quase sempre dava errado.

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48=XLVIII

Minha vida no roçado,

Não foi lá nenhum colosso.

Andava de pés no chão,

Magrinho, só couro e osso.

O short todo rasgado,

Baladeira no pescoço.

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49=XLIX

Brincar de cair no poço,

Era a que eu mais gostava.

Porque sempre que eu caia

E uma moça me salvava.

Dava um beijo e um abraço,

Daqueles que demorava.

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50=L

A gente também brincava,

De pular amarelinha.

Passar anel e correr

Pra roubar a bandeirinha.

E de se esconder no mato,

No terreiro da vizinha.

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51=LI

Dinheiro a gente não tinha,

Nem tinha com que gastar.

Tudo que se precisava,

A roça tinha pra dar.

Era só encher a pança,

Dormir, sonhar e brincar.

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52=LII

Já que não posso voltar,

A infância no roçado.

Brinco fazendo cordel

Em sextilhas, bem rimado.

Dando voltas com meus versos,

No carrossel do passado.

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Fim

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Se alguém ler ou comentar esse cordel, desde já, deixo o meu muito obrigado, pois devido o texto ser longo se torna cansativo. inté

Damião Metamorfose
Enviado por Damião Metamorfose em 09/09/2010
Código do texto: T2488228
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