NA ROÇA TEM...

Setilhas de minha autoria extraídas do tópico “NA TOÇA TEM” (criado por Pedro Ornellas) na comunidade do Orkut “ Sou Trovador”, do magnífico trovador, José Ouverney.

NA TOÇA TEM...

Na roça, além da beleza

da propria mãe natureza,

temos um vocabulario

com peso de relicario!...

porém, a maior razão

deste livro, meu irmão,

é mostrar-lhe o meu diario!

Luar banhando terreiro,

bem-te-vi no abacateiro,

cotovia na palhada!...

- uma porteira trancada -

lobos, uivados medonhos,

matuto bebendo sonhos...

... e a cabocla apaixonada!

Madrugada, olha a janela,

desce a escada, abre a cancela,

seu cachorro vem latindo,

benze a Deus e vai saindo,

pega seu berrante e a avena ,

tasca um beijo na morena...

...planta o dia assim, sorrindo!

Essa é a vida do caipira:

- da terra, o sustento, tira,

tem o sol, o vento e a brisa,

paz e amor é o que ele visa!...

Um artesão de mão cheia

que pouco busca na aldeia,

tem na roça o que precisa!

Na roça tem alazão,

pinguela no ribeirão,

capanga pra guardar prego,

muito encardida, não nego,

café pronto na chaleira,

cachaça na prateleira

pra deixar matuto "cego."

No portal um candeeiro,

dentro do colchão, dinheiro,

tem gaiola nas janelas,

porta presa com tramelas,

carne de porco na banha,

na parede tem aranha

e biscoito nas gamelas.

Monjolo pilando milhos,

comadre com treze filhos,

compadre cortando palha,

raspando fumo em navalha...

guria picando lenha

e a patroa , sempre “prenha”,

se ocupa em coser a malha.

Tem formão, trado e serrote,

guaiaca, brida e chicote,

cercas de arame farpado,

mulher no cabo de arado,

tem cincha, bacheiro e sela,

um cachorro, uma cadela

e um potrinho no roçado.

No dia de marcar gado

buscam reses no cerrado,

bota um ferro no fogão

e berra para o peão:

-Traga logo o ferro quente

pra marcar o que é da gente,

aqui também tem ladrão.

O matuto que é safado

pula a cerca do seu lado

pra ficar com a polaca,

que ginga feito matraca

no plantio de feijão...

O safado do peão

abre mão até da vaca.

Estilingue pra caçar

passarinho pro jantar,

garrucha de bambu fino

- arma de todo menino -

pra dar tiro bem ligeiro

preparando o cavaleiro

desde muito pequenino.

O arrebanhar de peões

quer mostrar, em mutirões,

o Deus menino tão pobre

que pra tornar-se um Rei nobre

escolheu ser caridoso,

que um peão, quando amoroso,

por Ele, o seu joelho dobre...

Lá tem espontaneidade,

quero dizer, na verdade,

povo de coração puro,

seja branco ou seja escuro

é sempre do mesmo jeito,

com a verdade no peito

não fica em cima do muro.

Feijoada de mocotó

é tão boa que dá dó

ver correr pelo pescoço

aquele cardo tão grosso

e a mãe, de testa franzida,

vendo a fia , na lambida,

zoiando praquele moço.

Lá tem jacá de taquara,

que é feito de fina vara

tirada do bambuzal

e armadilha no quintal,

lugar de preparar ceva,

pra onde o perigo leva

a caça, bicho animal.

Se o clima é de nostalgia

sempre reina a cantoria,

lamparina com pavio

e sanfona cor de anil,

um casal dentro da rede,

eletrola na parede...

velho disco de vinil.

Tem carrapato e chulé,

tem pulga e bicho de pé...

quem não tira o “excomunguento”

enche a casa de lamento;

só se vê reclamação

por andar com pé no chão

no chiqueiro fedorento.

Na roça tem mutirão

e um boi chamado Moirão

que faz junta com Caroço,

pesa a canga no pescoço

- velho jugo de madeira -

carreando, a semana inteira,

para o dono...um pobre moço.

Velhos cochos de faveiro,

samburá lá no pesqueiro

e toco de bater sola

no rabicho de uma argola

para rebater botina,

cujo prego é uma rotina:

- faz o calo e ainda empola.

Dia de feira de gado

certo boi, muito enfezado,

pelo alpendre se embrenhou

e o povo todo gritou!

eu, com vara de ferrão,

fiz cair sangue no chão

mostrando ao povo quem sou!

Vacas de laranja-lima,

pedras pra brincar de ímã

e um carrinho de lobeira

com rolimã na rodeira,

mas chique mesmo, de fato,

era Monteiro Lobato

narrado ao pé da porteira.

Lembro bem de uma bacia

(ficava embaixo da pia )

feita de metal prateado,

ornada em cobre dourado

para ser nossa banheira,

também amparar goteira

quando chovia dobrado.

Caldeirão e caçarola,

do polvilho faz-se a cola

e os chinelos são de embiras,

trançados com belas tiras...

linda colcha de retalho

lá na mesa do baralho

para alegrar os caipiras.

Tem cipó pra gangorrar

e ribeirão pra nadar,

tem muito capim-gordura

e canavial com fartura

pra fazer muita cachaça,

o melado sai de graça,

só se vende a rapadura.

Lá tem, de manhã bem cedo,

requeijão de leite azedo

deixado pelo leiteiro

que, preso num atoleiro,

amanheceu foi num brejo

por causar o maior frejo:

- chama de sogro o vaqueiro.

Tropeiro, com pé na estrada,

leva o gado pra invernada

com matula no embornal:

uma pamonha de sal

e farofa de galinha

bem socada na latinha,

comprada lá no arraial.

Em noite de dia santo

sanfona geme num canto

pra fazer peão chorar,

pois não tem a quem amar:

- as moças vão pra cidade

em busca da tal vaidade

que o radinho vem contar.

Lá na roça tem penico,

menstruação se chama Chico,

a diarreia é caganeira

e é folha de bananeira

que se limpa no “local”...

“arma” de vaqueiro é pau

e só brocha na parteira.

O piso da casa é chão

e num canto tem pilão.

Forno de torrar farinha

e um poleiro de galinha,

“combinação” no varal,

carro de boi no curral...

canivete é na bainha!

A privada é bananeira

e o banho lá na ribeira,

colchão de palha de milho,

caminho da roça é trilho,

pés se lavam na bacia,

tem catuaba todo dia

pra garantir mais um filho!

Tem janela pro luar,

serenata pra beijar

e banquinhos de madeira

debaixo de uma amoreira.

Tem carinho com fartura,

dos avós, uma moldura

em cima da cantoneira.

E quando chega o domingo

tem até pé de cachimbo,

nada de pito de palha,

dia santo não trabalha,

vão à igreja pra rezar,

é dia de se arrumar,

fazer barba com navalha.

Lá têm paredes caiadas,

bate o sol, ficam douradas,

água fresca tem na talha,

lá não tem nego que “falha”,

pois têm ovos de codorna

e gemada na água morna

a tisnar lá na fornalha.

O povo ajuda contente,

matuto é puro e não mente ,

comida farta na mesa

- tem partilha na pobreza -

Todo mundo tem jardim

e o perfume de jasmim

se espalha na redondeza.

Lá têm causos de arrepiar,

muitas mortes pra lembrar...

em noites de assombração

uivam mortos no porão!

Dona Maria, contando,

diz que os mortos vão voltando

pra cobrar a escravidão!

Lá tem banana no cacho,

tem romã no pé ( eu acho...),

moça prendada bordando,

senhora de fé rezando...

Tem um descaroçador

que é missão de Valdonor,

que dizem, nasceu trovando...

Na varanda tem cutelos,

muitos pregos e martelos,

foices de todo tamanho

e marcas para o rebanho,

porteiras de pororoca,

cabaça pra por minhoca

e as tais chumbadas de estanho.

Lá no galho da paineira,

bem pertinho da porteira,

dorme um galo cantador

com garganta de tenor

acordando a camponesa

pra botar café na mesa,

dando início ao seu labor.

Pro sertanejo é chacina

dia de tomar vacina,

não tem medo de serpente,

mas agulhada ele sente,

não que a dor seja profunda,

dói mesmo é mostrar a bunda

para um macho diferente.

Lá tem moda sertaneja,

bule quente na bandeja

e disco em jacá de milho

embrulhado em coxinilho,

para sentar tem pelego

num banco perto do rego...

...na vitrola um estribilho .

Para o matuto cansado

tem amendoim do roçado

e jurubeba é saída

pra quem teve a recaída...

lá tem comadre que engana

com sutiã de barbatana

pra empinar bola caída.

Na roça tem uma venda,

tem de tudo que encomenda

e tudo sai “pendurado”,

lá não tem preço dobrado,

o vendeiro é gente boa,

vende banha de leitoa

e salame defumado.

Porco gordo no chiqueiro,

cachaço lá no mangueiro

e as novilhas na invernada,

patrão bolina a empregada

no resguardo da patroa,

dizendo que a moça é “boa”

embucha a pobre coitada.

Bem do lado da porteira

uma placa de madeira

para acolher forasteiro

que vem como mensageiro

de reses que estão perdidas;

visitas são acolhidas

no carinho brasileiro.

Uma escola na varanda

e se alguém tem a desanda

corre para a bananeira.

No recreio tem cachoeira

é que os moleques da escola

puxam galho feito mola

no impulso da ribanceira.

Para o matuto isto é graça:

- Pito de palha e cachaça,

Jogo de truco ou palito,

provocação, muito grito,

um torresmo na bacia,

um radinho sobre a pia

e o seu time favorito.

O palito do vaqueiro

é uma fita de coqueiro,

que se arranca da vassoura

quando o almoço é na lavoura

e absorvente de caipira

é um pedacinho de tira

cortado com a tesoura.

Um velho chapéu de palha

- escudo em qualquer batalha –

tem carroça e carpideira,

um arreio , uma quaieira

e as esporas do peão

penduradas num mourão

talhado em grossa madeira.

No curral um velho esteio,

arrimo, se houver receio,

que segura o boi no laço,

para o marruá não tem braço

que suporte a sua ira

e não existe caipira

que vença sem embaraço.

Dois carpinteiros na serra,

colono lavrando a terra

e pescadores na lida,

singrando os mares da vida

a procura de alimento

pra não deixar ao relento

a família tão querida.

Tem picareta , enxadão,

uma enxó, pua e sião,

lá ninguém perde a estribeira

tem estribo na cocheira

e se cai geada tem touca,

tem jirau pra quarar roupa,

pra abanar feijão, peneira.

Cerca marcando divisa,

algibeira na camisa

e para o frio a flanela,

costurada com cautela

pela esposa dedicada,

que está sempre atarefada,

pra si mesma não dá trela!

Quando chega uma borrasca

logo após vem a nevasca,

radar de caboclo é a vista,

na vivência tem a pista

que ele usa como defesa:

- não maltrata a natureza,

não destrói, ele conquista.

Cabresto feito em sedenho,

cuja crina (ainda tenho!)

pendurada na parede,

virou suporte da rede

que segura a nossa história

pra balançar a memória

e matar a nossa sede.

Sabão se faz com diquada

e cada bola enrolada

vai para um velho balaio

pra durar de junho a maio

- tempo que se queima o angico -

guardam cinzas num penico,

bem longe do papagaio.

Numa grande e velha tuia

vão jogando, com a cuia,

todo arroz que se consome,

ficar fora o rato come

e mercado ali não tem,

muito longe passa o Trem,

se demora vem a fome.

Lá na roça tem ditado

com humor, muito engraçado:

- O boi sonso dá cornada.

- Galo canta e não faz nada.

- A galinha tagarela

não tem ovo nem pra ela.

- Cão bravo só dá rosnada.

Bica d’água ( ainda ouço!)

que deságua em calabouço

e pedra de amolar faca

na forquilha de uma estaca!

a anágua da lavadeira,

no batedor de madeira,

é a conversa que destaca.

Até hoje ouço o gemido

de vovó no meu ouvido:

-“ Tenha dó desta Jeroma,

meu engenho de maroma

muito tempo que num mói

seu gimido inda me dói

e a sodade é uma carcoma”.

Na gingada dos pilões

- a luxúria dos peões -

no bailar da trapizonga

diz o matuto: - “isto é gronga,

é demo que faiz gambiarra,

incitano nóis prá farra,

lá na vila, atrais de tronga.”

Um sofrimento engraçado

é quando morre um coitado;

- o defunto sobre a mesa,

do lado, uma vela acesa

e o catireiro proseando,

vendendo gado e comprando,

barganha sem ter despesa.

Tem gado gordo no pasto,

arroz e feijão pro gasto,

raposa pega galinha

e o matuto uma “branquinha”!

Tem gavião comendo pinto,

churrasco com vinho tinto

e comadre sem calcinha.

Lá também tem muita arenga,

se o matuto fala em quenga

o chicote come o lombo!

Leo também levou seu tombo:

- mano Zim , com a espingarda,

ficou pajeando de guarda

e quase que fez um rombo.

Certo dia, no arrebol,

botei fogo no paiol

e o meu pai com seu chinelo

e uma vara de marmelo

me fez ir pra água de sal,

do tanto que passei mal

por sofrer o tal flagelo.

Milagre também ocorre,

quase que um matuto morre;

a vaca joga no chão

o teimoso de um irmão,

nossa mãe implora a Deus:

- “tenha dó dos filhos meus” !

...e Heli sai sem arranhão.

Nossa “Escola Pai Joaquim”,

bem perto do Zé Carrim,

é a lembrança mais querida;

foi suporte em nossa vida,

foi o guincho na escalada,

transformando a nossa estrada

pra nos dar pão e guarida.

Todo dia que amanhece,

minh’alma jamais esquece:

- Dentro da roça de cana

a armadilha de dubana

e um arrepio na nuca

ao ver, dentro da arapuca,

comida para a semana !

Na estradinha da pedreira,

no matinho da porteira,

a saudade vai buscar

- sem sofrer, sem reclamar -

sete irmãos ou sete filhos

aprendendo a fazer trilhos

que levam ao verbo amar.

Saudade do meu sertão!...

- Mamãe cardando algodão,

no rosto um olhar sereno,

no colo o filho pequeno,

do seu peito, sempre a espera

e na voz de primavera

o perfume do amor pleno.

Nem dormindo isto me sai:

Grudadinha no meu pai

- na garupa de Alazão -

explorando o chapadão,

o galope era perfeito!...

abraçada no seu peito

via o céu tocar o chão!...

...Mas lá também tem tristeza

por ver a mãe natureza

padecer a escravidão

ao lutar contra a extinção

de tudo que gera vida,

beleza, pão e guarida

pra quem habita a nação.