Garimpo de fronteira - O dia que Canaimé encontrou Dona Ritinha

Lá pras bandas de Roraima

Extremo Norte do Brasil

Foi morar Dona Ritinha

Mãe de Mala e de Janil

De Rebeca, de Soráia

De Januário e Fabril

De Gonzalo, Fabiano

Juliano e Piririu

De Alfredo, Bacamarte,

Virgulino e Surupiu

De Cascavel, de Silvino

De Corisco e Ôi de anil

Os meninos mais danados

Do Nordeste brasileiro

Que para fugir da seca

Que deu no mês de janeiro

Saíram de seu lugar

Pra bem perto do estrangeiro

Foram conhecer o Norte

No garimpo de fronteira

Novo trabalho do pai

O seu Titonho Peixeira

Que seria o mais temido

Não fosse sua companheira

Dona Ritinha era gorda

Baixinha e desengonçada

Cabelo sempre assanhado

De perna acambotada

Leve cicatriz no rosto

E com “coice” na passada

Ajudava todo mundo

Do vizinho ao forasteiro

Mas se um dos filhos chorasse

Corria e era ligeiro

Se alguém mexesse com um deles...

Pegava logo o faqueiro

Durante o dia todinho

Arrumava o acampamento

Lavava um mar de vasilhas

Dava banho no jumento

Ainda catava os filhos

Sem parar um só momento

Depois das roupas passadas

Enquanto as horas corriam

Cozinhava pra seis homens

E pros filhos que cresciam

Brincando e aperreando

Que era tudo o que faziam

A vida não era fácil

Nem era de se espantar

Que Dona Ritinha fosse

Mulher braba pra danar

Quase sempre nada doce

E facim de se irritar

Certo dia aconteceu

De uma tigela quebrar

Em cima do pé de Pedro

Depois dele reclamar

Da mistura que a coitada

Se esforçou pra cozinhar

Depois ele se explicou

E tinha que se explicar

A senhora num intendeu

Pois eu vou já lhe contar

Foi a que Zefa me deu

Que num tava de agradar

Ela saiu para um lado

E Pedro foi garimpar

Seguindo bem chateado

Pois não pode se explicar

Desabafava, o coitado

Enquanto ia a mancar:

Eita que mulher danada

Joga esse troço pra lá

Nem Titoim Pexêra arguenta

Nem zumbi, nem boi-tatá

Nem Canaimé, coitado

Com essa pode arguentá

E ali por perto, nos matos

Ouvindo Pedro bufar

Um indiozinho espiava

Com medo até de piscar

Depois correu para a aldeia

Contando tudo a gritar:

- É na tribo do Garimpo!

Contem logo pro Pajé!

E assim muito empolgado

Num “Salve-se quem puder!”

Falou de alguém mais temido

Que o próprio Canaimé

A notícia se espalhou

A fofoca tomou pé

Chegando até a entidade

Que se sentiu mêi Mané

Dando um estrondoso grito:

- Ah, quero saber quem é!

- Mas... Quem é que está dizendo?

Onde mesmo vou achar?

Alguém assim temeroso

Que dá medo só de olhar...

Que sabe, melhor que eu

Por a ordem no lugar?

Nesse instante o indiozinho

Com sua voz bem fraquinha

Apontou logo com o dedo

- Fica ali numa cozinha

Vá lá que o senhor vai ver

A tal da Dona Ritinha

E antes da noite ir

Quase junto ao amanhecer

Essa nova criatura

Canaimé foi conhecer

Resmungando no caminho:

- Essa é boa. Eu quero é ver!

E quando viu a figura

Se assustou no mesmo ato

- Nossa, viu o seu cabelo?

Eis o primeiro contato

- Quem é você? Que é que tem?

Vem me ajudar com esse prato!

Canaimé meio tonto

Pegou um pano na mesa

E seguiu com a conversa

Sem saber quem era a presa

E sobre quem era o monstro...

Já não tinha mais certeza

Jura que não me conhece?

Nunca mesmo ouviu falar?

Nem no livro das crianças?

Numa HQ nem pensar?

Faça uma força, mulher

Você há de se lembrar!

Numa tarde de domingo?

(Insistia a criatura)

Quem sabe se algum velhinho

Relembrando minha figura

Falou de mim pras crianças

Numa roda de leitura?

Veja só, seu Canapé

Disse Ritinha a lavar

Desculpe, é Canaimé

Ele interfere a zombar

Não quero ofender o senhor

Nem quero lhe incomodar

Mas é que não tenho tempo

Nem mesmo de me sentar

A vida foi sempre assim

Trabalhar e trabalhar

Agora imagine só

Se vou poder conversar

Se eu vou saber quem furou

O fundo dessa bacia

Se eu vou saber quem deu nó

Na bota de Malaquia

Ou saber quem é o senhor

O dia é curto, sabia?

Depois disso a “divindade”

Sentiu-se muito ofendida

Ficou com cara de boba

Totalmente constrangida

De sequer ter assustado

Aquela dona esquisita

E percebendo que ela

Podia ser concorrente

A pedra de seu sapato

O pó da escova de dente

Deu início a um teatro

(Atuação excelente!)

Uma dramaticidade

Pra ninguém botar defeito

Quase um artista global

Com tudo que tem direito

E enquanto enxugava o prato

Foi batendo assim, no peito:

Sou o sopro da floresta

Divindade mui temida

Ninguém escapa de mim

Sem ter que curar ferida

Boto a ordem no pedaço

Caçando gente atrevida

No Norte sou uma lenda

A própria sombra do mal

A minha face é um crânio

Assustador de animal

Visto uma pele de onça

Por isso é que sou “O tal”

Com um cajado de madeira

Minhas penas, minhas palhas

Persigo quaisquer pessoas

Que me pareça gentalhas

E que baguncem florestas

Com intenções meio falhas

Ela olhou bem destemida

Aquele ser esquisito

E zombando de sua cena

Dando um sorriso de apito

Perguntou se divertindo:

- É agora que eu grito?

Vendo a cara do frustrado

Tentou ser mais educada:

Veja bem, seu Canapé

Isso aí não é quase nada

Se comparado com a vida

De uma dona de casa

Eu, Ritinha, o dia inteiro

Cuido, só, da filharada

Arrumo a casa ligeiro

Cozinho pra macharada

Pego água lá no rio

Trago é na lata (Coitada)

E depois, no fim do dia

Cum as costa toda quebrada

Invento ainda alegria

Dando uma de pirada

Pra receber seu Pexêra

De guarda fantasiada

Canaimé disfarçando

Fingiu sequer ter ouvido

E deu continuidade

A seu texto preferido

E pra não perder a trama

Tentou se por mais erguido:

Imponho a obediência

Até o tuxaua tem medo

É assim que tem que ser

Este é meu grande segredo

Se alguém tiver desgostoso

Vem cá que lhe corto um dedo

Escute, seu Canindé

Tenho muito o que fazer

Mas quero lhe convidar

Para o senhor aprender

Uns truques pra botar ordem

E é bom que o senhor vai ver

O dia de uma mulher

Com tanta tarefa dada

Que nem um homem dá conta

Nem fera com voz rasgada

Nem mesmo Chefe de Estado

Nem guerrilheiro, nem nada

A criatura pensou

E meio que desfaçando

O desafio aceitou

Como quem tá bocejando

E depois deu alguns passos

Sorrindo e assoviando

Viu as crianças dormindo

E pensou “Vai ser moleza”

Vou mostrar que isso aqui

É trabalho pra princesa

Depois volto pra floresta

Com porte de realeza

Olhem aqueles anjinhos

Eles só pensam em dormir

Mas se algum acordar

Nem vou precisar rugir

“Fiquem quietos!” vou gritar

E nem vão querer sair

Está aceita a oferta?

Então vamos começar

Vá naquela prateleira

Tire tudo pra lavar

E o que estiver lá por cima

Da mesa pode limpar

O arroz e o macarrão

Você deve temperar

Sirva o pão sempre bem quente

E o feijão tem que catar

Tem que estar tudo prontinho

Que é pra Toim num reclamar

Lave a roupa das crianças

Separadas das de adulto

Estenda bem direitinho

Que é pra não fazer tumulto

Pegue a trouxa pra passar

Deixando o cansaço oculto

Guarde com muito cuidado

Uma a uma num cantinho

Separadas pelas letras

Que é para achar rapidinho

Que além de ser eficaz

Fica tudo bonitinho

Depois disso varra a tenda

Molhe o barro que secou

Veja no fundo do cano

Se a gordura acumulou

Que cara é essa, monstrengo?

Ainda nem começou!

Guarde o prato, enxugue a pia

Ponha a carne para assar

Encha o pote e a bacia

Pegue as frutas pra lavar

Faça um suco bem fresquinho

E não se atreva a sentar!

Canaimé:

Vem menino, se levanta

Piririu ... Solte esse gato

Ei, não joga fora a janta

Não põe cola no sapato

Deus do céu, que isso é o inferno

Mais um pouco e eu me mato

Mala, Soraia e Janil

Soltem já o seu irmão

Corre cá, Dona Ritinha

Que isso aqui nunca vi não

Januário e Juliano...

Olha o fogo no colchão!

Assim foi o dia inteiro

Sem chances de descansar

Criança alguma atendia

Bagunçando sem parar

E Canaimé temia

Não voltar mais pra seu “lar”

Dona Ritinha lembrou

Do filme Tropa de elite

Um sucesso no nordeste

Até na igreja, acredite

E armou também seu teatro

Num estilo de Afrodite

Interpretando uma cena

Sua parte preferida:

- Pede pra sair, monstrengo!

Repetiu bem atrevida

Ganhando na mesma hora

O troféu de mais temida

E não é que a “sumidade”

No final se acovardou

De entidade maldita

A chorão ele passou

“Não posso mais, eu lhe peço!”

Foi o que ele gritou

Ajoelhou-se no barro

E começou a chorar

E foi assim, como um bobo

Se arrastando a implorar:

- Eu quero sair daqui!

Pra floresta vou voltar!

Depois disso, no garimpo

E em qualquer outro lugar

O que se tem repetido

Quando ela tá pra chegar

Todo mundo sabe a reza

Nem precisa perguntar:

Eita que mulher danada

Joga esse troço pra lá

Nem Titoim Pexêra arguenta

Nem zumbi, nem boi-tatá

Nem Canaimé, coitado

Com essa pode arguentá