A SAGA DE SERAPIÃO
(Serapião) -Vim aqui contar pro cês
Desses sofrimentos meus
Dizer que aqui num tenho vez
Nessa terra de meu Deus
Sou retirante nordestino
Do sertão do Ceará
Vim pra cá quase menino
Pra modi de pudê trabaiá
Mas desde que cheguei aqui
Trabaio num tenho não
Tenho fome, tenho frio
E um vazio no coração
Arrumei u'a donzela
Contraí casamento
Hoje num tenho mais ela
Me chifrou com um sargento
Tive u'a filha muito formosa
Que virô u'a mocinha
Bunitinha e caprichosa
Mas se enrabichô com a vizinha
Tumbém tive um varão
Cabra bão, filho de Serapião
Não chorava nem com cebola
Aí cresceu, ficou grandão
Ficou forte e ficou baitola
Meus dentes caíram tudinho
Só ficou um aqui na frente
E outro lá no cantinho
E pra completar a minha dor
Ainda tenho que ser chamado
Por esse nomezinho disgramado
Que minha mãe me butô
Quero preguntar pro cês
Se nessa terra de meu Deus
Existe sofrimento tão grande
quanto os sofrimentos meus?
(amigo) -Meu Cumpade sertanejo
Eu tumbém sô sofredô
Quando te olho, o que vejo
É que sua dor é minha dor
Meu filho morreu de doença
Minha esposa de desgosto
Não há muita diferença
Na tristeza do meu rosto
E na tristeza, vou vivendo
Tento rir pra num chorar
Passo o dia inteiro sofrendo
não sei se vou suportar
Mas cumpade nordestino
Vomo arrumá serviço
Vomo mudar nosso destino
Tenha fé em Pade Ciço
Tem um dotô que conheci
Procurando muita gente
Pra modi de um prédio construí
Cê vai pudê butá seus dentes
(Serapião) -Hum! Deus te oça cumpadinho
Que num me aguento mais de dô
Só tô cum dente do cantinho
Que o da frente se quebrô
E esse tal lá do fundinho
Num me serve nem de abridô
Meu padim Pade Ciço
Proteja minha gente
Que vai trabaiá nesse serviço
Debaixo do sol quente
(narrador) 'E assim, Serapião
Começou a trabalhar
Levando no coração
A esperança de poder voltar
A pisar naquele chão
No interior do Ceará
Com a certeza que o sertão
Um dia vai virar mar'
'Mas o destino, coitado
Outra vez, lhe trouxe a dor
Depois de tanto trabalhado,
Escutem o que disse o doutor:'
(patrão) -Meu nobre companheiro
No momento, não posso te pagar
Sei que você é pobre e precisa de dinheiro
Mas Deus vai lhe ajudar
(Serapião) -Meu padim Pade Ciço
Trabaiei feito um condenado
E esse danado desse serviço
Num me rendeu nem um trocado!
Queria saber, se ser honesto é sofrer
Quantos sofrimentos meus
Nessa terra de meu Deus!
Minha vida foi de luta
E só conheci fila da puta!
E depois de tudo que fiz
Vou morrer pobre e infeliz!
(narrador) 'Serapião estava certo
Profetizando a sua sorte
Mal sabia que estava tão perto
O dia de sua morte'
(Serapião) -Que lugar é esse? Quem é você?
(Jesus) -Vou acabar com os sofrimentos seus
Você não vai mais sofrer
Pois sou o Nazareno, filho de Deus!
(Serapião) -Oxe! Num é que é o filho do homem!
Meu sorriso tem todos os dentes
E num sinto mais fome!
Tô no paraíso, minha gente!
Mas Jesus Cristinho, por favor
Eu queria preguntar:
E aquele dotô, donde que foi parar?
(Jesus) -Ele, hoje, trabalha feito um condenado
Moleza, ele não tem mais
Ele, agora, é empregado do compadre Satanás
(Serapião) -Meu padim Pade Ciço
O Senhô num me abandonô!
Já tenho outro serviço
E é serviço de dotô!
Como anjo guardião
Agora quero protegê minha gente
que veve lá no sertão
Com as boca fartando dente
Com os pé descarço no chão
Lascando naquele sol quente
Pra quando chegar o dia
Dos meus cumpades me encontrá
Descobrí cum alegria
Que aqui no céu, o sertão é mar...