NOS CABELOS DA SAUDADE.

Sinto saudade da vida

Que tinha antigamente

Das carreiras na estrada

Sentindo o sol bem quente

Da brincadeira de laço

De viver sempre descalço

Brincando sobre o batente.

Ainda sinto o cheiro

Da flor que tinha no mato

Do frio de manhãzinha

No meu cobertor barato

Da pingueira toque-toque,

Sinto falta do badoque

E do meu xerém no prato.

De sentir o cheiro da terra

De tomar o meu café

De espantar a galinha

Beliscando o meu pé

De me esconder no morro

Brincando com meu cachorro

Na fazenda Santa Fé.

Sinto saudade pesada

Do meu lugar de nascença

Da minha cama de vara

Onde peguei uma doença

Acho que foi catapora

Uma doença de outrora

Que veio sem ter licença.

Sinto saudade das safras

Das mangas e dos cajus

De deitar olhando o céu

Ver voando os urubus

Fazer brinquedos de meias

Ver os rastos nas areias

Onde corriam os tatus.

Parece que eu tô vendo

Um vaqueiro na estrada

Montado num alazão

Tangendo uma boiada

Isso trago na lembrança

Voltando eu ser criança

Não cresceria por nada.

Era uma vida simples

Era uma vida boa

Com o fresco da sombra

Com o tempo atoa

Ser menino sem saber

Que um dia ia crescer

Para ser outra pessoa.

Sinto falta da cozinha

Que mãe fazia o comer

Da vontade que só ela

Tinha de me ver crescer

Do beijo e da palmada

Sinto uma falta danada

Que chega ate doer.

Essa saudade me leva

Para um tempo dourado

Eu fico nu do presente

E me visto do passado

Volto ter corpo franzino

De homem vou pra menino

Pobre, magro e levado.

Tudo me agradava

Pra brincar no meu chão

Meu boneco era de barro

Meu lápis foi um carvão

Eu pintava nas calçadas

Mãe e pai de mãos dadas

Rindo sobre o torrão.

Sinto saudade do grito

Que mãe dava meio dia

"Menino corre pra mesa

Se não a comida esfria

Tange a mosca do prato

Se tu não comer te mato"

E eu fingia que comia!

Sinto saudade também

Do primo da minha idade

Do caldo da cana fina

Que eu beia com vontade

Um copo todo eu enchia

Mas meio só eu bebia

Dele era outra metade.

Sinto saudade da casa

De azul toda pintada

Do alpendre cumprido

Da cumeeira rachada

De quatro bicos de luz

E um coração de jesus

Numa parede mofada.

Lembro daqueles dias

Que a chuva não parava

O dia ficava noite

E a noite assombrava

A coruja dando grito

E eu ouvindo aflito

Enquanto pai cochilava.

Barreiros e cacimbas

Eram pra tomar banho

Pra família beber água

E dá água pro rebanho

Água era bem comum

Servia pra qualquer um

Sem ver lucro ou ganho.

No ano de chuvada

Tudo acontecia

Na terra o grão vingava

O fruto amadurecia,

E menino como eu

Viu um povo que colheu

Paz amor e alegria.

Jogava pedra no rio

Para vê-la deslizar

Correndo em cima d'água

Para depois afundar

Não dava um segundo

Antes de bater no fundo

Tornava outra jogar.

Quando passava a chuva

Por cima da terra dura

A natureza fazia

A sua travessura

Dela vinha bulindo

Um formigueiro cuspindo

Lavas de tanajura.

O calor desse bom tempo

Era um calor diferente

Vinha da boca da terra

Arrotando sopro quente

Secando todo o mato

Sem ser calor de asfalto

Como hoje a gente senti.

A vida era bem simples

O povo se conformava

O pouco a gente tinha

O muito nem se falava

Qualquer medida servia

E tudo que se comia

A terra era quem dava.

Se eu pudesse voltar

Aquele tempo dourado

Ia de mala e cuia

Com o menino levado

Deixava o lado de cá

Ia pro lado de lá

Pobre e rico passado.

Soltava o corpo no tempo

Sem medo sem regalia

Todo o tempo que tinha

Todo tempo corria

Corria feito o riacho

Que dava água ao cacho

De frutas que se comia.

Sabonete Ave Maria

Era um bicho papão

O que fazia espuma

Era a tora de sabão

Amarelo feito jaca

Que tirava toda inhaca

Do lombo de um cristão.

Só no dia de domingo

Era mais primoroso

Mãe trocava de sabão

Por um outro mas formoso

Foi o melhor que já tive,

Era um tal de "palmolive"

Esse sim era cheiroso.

De resto um par de conga

Parecido com sapato

Feito de um pano azul

Bico branco no pé chato

Eu acanhado sem graça

Pro lambe lambe da praça

Sapecar o meu retrato.

Depois mãe me levava

Pro outro lado da rua

Onde tinha um paraíso

Pra criança pobre e nua

Sentir o gosto do mel

Rodando num carrcel

Feito de madeira crua.

Ensino quase não tive

Se perdeu em uma curva

Tudo que eu me lembro

Foi em um dia de chuva

Tava escrito uma frase

Foi toda a minha base

O VOVÔ VIU UMA UVA.

Isto li no quadro negro

Escrito a branco giz

Feito pela professora

Esmeralda de Diniz

Eu grafei no meu caderno

Foi o escrito mas terno

Que em minha vida fiz.

As vezes chego a pecar

Quando lembro que nasci

Num berço feito de nada

E nunca esmoreci

Fui feliz e inocente

Me responde Onipotente

Por que foi que eu cresci?

Pra virar homem sisudo

Nesse mundo de adulto

Cobrar e ser cobrado

Por outro homem astuto

Viver sem o meu terreiro

Trabalhar só por dinheiro

Aguentando todo insulto.

Mas eu tenho um tesouro

Que é minha lembrança

Amarrada pela corda

Que a saudade balança

Num vai e vem compassado

No quintal do meu passado

Onde fui uma criança.

Corre o mundo vai o tempo

Voa a sorte em liberdade

E o dente dessa vida

Corta a nossa idadae

Mas a corda da lembrança

Amarra e faz a trança

Nos cabelos da saudade.

Ebenézer Lopes
Enviado por Ebenézer Lopes em 11/08/2017
Reeditado em 12/08/2017
Código do texto: T6080716
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.