UM BURRO AÇOITANDO OUTRO

Um tanto triste eu registro
Certo caso que assisti
Em plena rua do centro
Da cidade onde nasci
Meu relato é verdadeiro
Se conto é porque eu vi

Estava eu distraído
Passeando pela rua
Olhando mulher bonita
E pensando nela nua
Mas não fique chateado
Não era a mulher sua

Porque mulher tem demais
Rebolando na cidade
Uma mais linda que a outra
De muita ou pouca idade
Inteligentes, charmosas,
De ampla capacidade

É tanta mulher mimosa
Usando calça comprida
Ou vestidos decotados,
Inocentes ou saídas,
Mas cheias de colorido
Alegrando nossa vida!

Aquela piscou-me o olho
A outra tá rebolando
Uma acenou-me rindo
Vejo outra me acenando
Ei, espere, não é isso
Que eu estava contando

Esse assunto, porém,
Eu trato em outra hora
Preciso me reportar
Ao que vou contar agora
Acho bom começar logo
Antes que me mandem embora

Como eu já disse antes
Pela rua ia passando
Vendo a tarde arrefecer
Logo vi um burro andando
Sob o peso da carroça
Inda por cima apanhando

O condutor da carroça
Batia tanto no burro
Chicoteava brutal
Dele tirando zurro
E o coitado do animal
Ainda levava murro

Pude ver e observar
O quanto a carga pesava
Acima da capacidade
Por isso incomodava
O coitado do animal
Que em pouco empacava

O homem que chicoteava
Já era meio maduro
Andava ali nos sessenta
Acomodado num monturo
Que enchia a carroça
Parecendo um grande muro

Seu olhar mostrava ira
A boca quase entortava
Os olhos viravam brasa
O nariz se arrebitava
Vibrando o chicote no ar
Seu cabelo eriçava

O rosto exibia ódio
A bocarra espumava
Havia fumaça nos olhos
Cada vez que espancava
O tal bichinho indefeso
Que por bobagem apanhava

É que o indefeso animal
Magrelo como a folha
Estava em pandarecos
Porém não tinha escolha
Ou trabalhava ou o velho
Metia-lhe um saca-rolha

Tão esquálido ele era
Que talvez passasse fome
Perto de quem trabalha
E bem longe de quem come
Muitas feridas no lombo
Onde a mosca fica e lambe

Na hora que o burro parou
De tão machucado e doído
Arfando quem nem porco
Açoitado e ferido
No auge de suas forças,
Vi o velho enfurecido

O corado do seu rosto
Aumentou mil vezes cem
O cara ficou tão grande
Do tamanho de um trem
Se seus olhos fossem arcos
Atiravam flechas também

De sentado que estava
Pulou ficando de pé
Sobre o lixo da carroça
Esquentou que nem café
Coado numa cuia podre
Por sua leprosa mulher

O braço subiu bem alto
Tendo o chicote na mão
A boca suja gritava
Um monte de palavrão
O povo de longe olhava
Aquele cunhado do cão

O chicote subiu e desceu
E tantas vezes acertou
O burro todo batido
Que logo o sangue jorrou
Mas ainda assim o velho
A lhe açoitar continuou

O burrico estremecia
Cada vez que apanhava
O sofrimento foi tanto
Que ele já nem zurrava
Penso que não mais sentia
A bruta surra que levava

Eu tentei interferir
E acabar a crueldade
Bastava tanta vileza
Chegava tanta maldade
O burro é um grande amigo
De toda humanidade

O bárbaro não quis conversa
Uma baita faca sacou
E com seus olhos de fogo
Tão profundo me olhou
Dizendo palavras duras
Com as quais me ameaçou

- Não venha se meter a besta
No que não lhe diz respeito
Se vier até aqui
Meto-lhe a faca nos peito
E faço um buraco tão grande
Que nenhum médico dá jeito –

Como eu não sou de briga
Gosto de vida pacata
A espécie de cidadão
Que autoridade acata
Achei por bem ficar longe
Na distância mais exata

Não é ato racional
Homem contra homem lutar
Só os bichos se engalfinham
Pois não sabem dialogar
Embora muitos homens
Não consigam conversar

O velho escondeu a faca
Na bainha da cintura
Agora já mais raivoso
Tomado pela loucura
Pulava feito macaco
Doido a essa altura

O coitado do burrinho
Permanecia esperando
Qualquer tipo de milagre
Para a dor ir acabando
Daquela carga pesada
Alguém o fosse livrando

Uma baba asquerosa
Da boca do pobrezinho
Descia em correnteza
Escorrendo no focinho
Deslizando pelo chão
- Pobre do animalzinho! -

Já o sangue do seu dorso
Enormes crostas formava
Colava no seu lombo
E logo coagulava
Misturado c’a poeira
No momento que brotava

Nas cercanias do local
Se formou uma multidão
Que olhava abismada
Aquela situação
E com medo do agressor
Não ousava por a mão

Tendo o velho descido
Da carroça carregada
Chegou perto do burrico
A raiva mais aumentada
E com o cabo do chicote
Recomeçou a porrada

Com tanta brutalidade
Em cima do animal
Não deu outra, ele caiu
Fazendo o ar cheirar mal
Porque o lixo desabou
Deixando logo o seu sinal

Mas o velho não se conteve
Parecia alucinado
Xingava o mundo inteiro
Gritando baratinado
Lutando contra o vento
Feito um bicho danado

Em meio à zoadeira
Do burro, da multidão,
Do velho esbravejando
Com o chicote na mão
Vi o carro da polícia
Chegando de supetão

Não posso nem revelar
Pois não sei quem avisou
Ao comando da polícia
Mas de súbito ela chegou
Fazendo estardalhaço
E o burro do velho levou

O burro a que me refiro
Gente, de quatro patas não é,
É o que anda só com duas
Nascido de homem e mulher
Que pensa ser racional
Mas não passa de um mané

Não foi tão fácil, porém,
Botar o velho em cana
Porque ele estrebuchou
E deu trabalho, o sacana,
Puxando da bainha
Uma naife americana

Brandindo a arma branca
Feito bandeira no ar
Ele desafiava a polícia
A boca aberta num esgar
Foi preciso muito esforço
Para o velho agarrar

Mas, como sói acontecer,
O agressor foi agarrado
Depois de algum tempo
Sendo logo algemado
E levado num camburão
Para ver o sol quadrado

Enquanto tratavam o bicho
Deitado e todo curvo
Me veio um pensamento:
O cara todo casmurro
Batendo no irracional
Não era homem, mas um burro

Eis aí o que eu penso
Sobre quem vive a espancar
Um burro que só trabalha
Sem tempo pra descansar
O xilindró é seu destino
Não tem como escapar
Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 17/12/2007
Reeditado em 30/08/2008
Código do texto: T781748
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.