O sonho tinhoso e a fé do povo – a peleja da chuva no dia de São José
1
Vou enredar a mazela
Dessa vida descabida
Quando se vive um sonho,
O melhor dessa tal vida
E ele se rebela um banho
De frustração atrevida.
2
Era o verão de ontem
Lá no sertão Bota-fé
Onde a vida é bem tinhosa
E o povo vive de fé
Em uma terra raivosa
Muito, entupida de má-fé.
3
Alguns viviam esperando
Cair do céu a esperança
Pra molhar aquele chão
E nos trazer a bonança,
Uma fartura de milho
Pra saciar nossa pança.
4
Os olhos no céu pregados,
Os joelhos no chão em pranto
Rogando ao nosso senhor
Que nos valesse um tanto
Para despregar o bucho
E tirar os pés do canto.
5
Mas a tal chuva não vinha,
O chão todo era rachado
O coração desalinho,
Eu um amaldiçoado
Achando que o meu desejo
Era só pra condenado.
6
Era o dia de São José
Resolvi armar a rede
Debaixo dum cajueiro,
Dormir com fome e com sede,
Fazer prece para ver
Descer água na parede.
7
O céu se achava escuro
Não tinha estrela nem lua,
Mosquitos nos meus ouvidos
Zumbindo uma canção crua;
Eram os donos da noite,
Os moradores da rua.
8
Meti os pés na rede
Me avexei pra espantar
Os inquilinos da ânsia
Para depois me deitar,
Mas nem se quer consegui
Do canto me arretirar.
9
Senti um peso no corpo,
Nos olhos pouca visão,
As pernas tremelicando,
No peito uma sensação;
Só sei que mergulhei fundo
Num sonho de compaixão.
10
Sonhei batendo na porta
Do infinito do céu
Apelando por São Pedro
Chaveiro do mausoléu,
Querendo pedir favor:
Realizar sonho esmoléu.
11
Supliquei um toró d’água
Para esborrotar açude,
Abrolhar verde no seco,
Peixes no rio amiúde,
Frutos pra o povo viver
Fartos e na plenitude.
12
Também desfrutei da prosa
Pra fazer outros lamentos:
Denunciei coronéis
E chiliques avarentos
De abocanhar toda a terra,
Nossa água, nossos ventos.
13
Estava de tudo armado
Com as minhas mãos em calo,
Os meus olhos retirantes
E o meu coração badalo,
A voz saindo embaçada
E o meu peito extrapolado.
14
Derramei alguns caroços
De lágrimas, de acalanto
Não consegui segurar
Toda dor do meu espanto
De falar com aquele homem,
De Deus e divino santo.
15
Ele espiou bem pra mim
Como quem se regenera,
Examinando o lamento
Fazendo cara de espera,
Depois abriu um sorriso
Estirando a mão de vera's.
16
Disse que sonhar sozinho
Não chega a florir a roça:
Ao dobrar aquela esquina
Pode cair da carroça,
Descer de boeiro abaixo
E virar apenas coça.
17
Foi falando com voz mansa,
Puxando minhas orelhas,
Afrouxando o coração
Me mostrando as (mis??) centelhas
De pingos de chuva forte
Pra correr nas nossas telhas.
18
- Volte para aquelas terras
E junte os agricultores,
Faça logo uma assembleia,
Depois some as suas dores:
Porque só com união
Se tem terra, pão e flores.
19
Prepare todo o roçado
Pra quando a chuva descer.
Enfrente as atrocidades
Dos infames do poder,
Pois o sonho coletivo
E mais fácil acontecer.
20
Daqui eu dou um jeitinho
Do seu pedido chegar
Para cair muito água,
Para o povo se alegrar,
Mas eu quero algo em troca,
Você tem que me ajudar.
21
Eu disse: - Valei-me, São
Zé do Perpétuo Socorro!
Qual será o pagamento?
Nem sei se fico ou se corro,
Pois quando é grande a esmola,
Não sei se vivo ou se morro.
22
- De que vale tanta súplica.
Disse o santo bonachão:
- Se o homem é egoísta,
Cria pássaros em prisão!
Quer botar cercas abaixo,
Com gaiola sem perdão?
23
Certo é cultivar o sonho,
A vida e a liberdade.
O amor dentro do peito
Sem as prisões nem maldade
Para que a chuva traga
Consigo fraternidade.
24
Eu olhei arregalado
Com as butucas dos olhos,
Porém sem piscar por nada,
Pensando em lindos abrolhos
Pras lágrimas da emoção
Que vinham descendo aos molhos.
25
Foi daí que acordei
Com melecas do Azulão
Caindo lá das alturas
Pra cima do coração
Trazendo-me cá pra vida
Sem dó, moído ou sermão.
26
Minha gente estava ali
Ensaiando a procissão
Do dia de são José
E minha pouca atenção,
Pois ontem já era véspera;
Troquei o pé pela mão.
27
Mas o sonho foi real,
Disso eu jamais duvido!
Eu falei com o chaveiro,
Ele não foi mal-ouvido
Inté vi o outro santo
Atrás da porta de ouvido.
28
Arregacei bem as mangas
De toda minha coragem,
Abri todas as gaiolas
E comecei a aragem
De partilhar o meu sonho
Na maior camaradagem.
29
Falei do próprio São Pedro
E também dos seus preceitos.
Da gente uni-se agora
E buscar nossos direitos:
Eles deram foi risadas,
Talvez, nossos malfeitos.
30
Disseram que foi um porre,
O pior de minha vida.
Fiquei meio alucinado
Com a mente repartida
Conversando com o vento
Uma lorota atrevida.
31
Ergui a mão lá pro céu
E caiu com força a chuva,
Com raio e muito trovão
Como um bom tapa de luva
Na cara desses incrédulos
Que choram que só viúva.
32
Era um sonho meu que tinha:
Um desejo coletivo.
A gente se embrenhou
Por esse mesmo motivo
Rezando aos santos com fé
Num elo de amor cativo.
Marcus Vinicius - professor, escritor e contador de história.