Natal

Não é muito bonita minha árvore de natal, não. Ela é magrela, pequena, e já se encontra bem deteriorada, pelos anos todos de uso nessa época bonita de fim de ano. Mas vovó insiste em montá-la, juntamente com o presépio - menino Jesus, uns cavalinhos de plástico que são grandes para o menino Jesus pequeno, desproporcionalizando a singeleza desse estábulo quase pobre e rústico. Tem também umas ovelhinhas pequenas, mais ou menos três, que também já estão desgastadas do uso, e poderiam muito bem, segundo minha vontade, servirem de brinquedo, de rebanho, lá no quintal, quando às vezes brincava de fazendinha. Estão desbotadas, e uma, vejo, está manca - patinha traseira quebrada que este ano vovó não consertou, não colou. Mas a árvore de natal, no centro, detrás da manjedoura, a que é minha, não é bonita. É uma árvore feia de natal.

É certo que poderíamos enfeitá-la, mas não seria justo, de jeito nenhum. Desde que me entendo por gente, ela sempre fora feia, assim já nascida esquálida e pobre, sem o encanto das outras árvores grandes, com bolas coloridas e o efeito da neve caída sobre o pinhal. Esta, além da ausência das bolas coloridas tradicionais, também não possui os flocos brancos, cristalizados, neve enfeitada, das outras árvores modernas e opulentas. É uma árvore quase estúpida. É uma natureza bastante morta, ojerizando o clima natalício. Poderia dizer que ela ofendesse todo o presépio em volta.

Entretanto, ela é minha. Lembro-me de como a ganhei: os netos de minha vó juntamente com as famílias se reúnem no dia de natal, almoçam e jantam na casa dela. É um dia festivo de comemorações, conversas paralelas e bastante rebuliço. Tempo de matar saudades, de ganhar presentes, de programar encontros que não acontecerão. Certa vez vovó disse para que nós, os netos, escolhêssemos alguma coisa do presépio, figurando propriedade particular de cada um dos afilhados. Mas que não poderíamos, é claro, levá-lo conosco, apenas nos sentiríamos responsáveis por eles, e, se quiséssemos, cada um de nós poderia, no dia da montagem do presépio, colocá-lo segundo sua vontade onde bem quisesse – o que era contradição, pois todas as vezes o presépio era montado do mesmo jeito, e minha opinião e a dos outros primos meus nunca valera nada. Era um presente alegórico, e confesso que não achei nenhuma graça e interesse nisso. Ora, todos escolheram rapidamente: menino Jesus, o José a Maria, os bichinhos, a casinha pobre, a manjedoura, estrela-guia, os reis santos divididos, etc. E eu, não. A árvore, nessa época, já era bem feiinha, e não foi de se admirar que ninguém a escolhesse. Sobrou pra mim. Meu pé-de-árvore-de-natal-feio.

Mas é preciso descrever o restante dos objetos de que compunha: além dos carneirinhos, tem também uma vaquinha preto-e-branca, bastante tetuda, que vovó coloca do lado esquerdo, a contragosto da maioria. O lado direito é dedicado à fila indiana dos três reis magos, sempre trazendo presentes, olhando a estrela-guia no alto. Sempre achei que o semblante deles era muito triste, e portanto nunca simpatizei-me com os reis no presépio, porque eles me parecem demasiadamente elegantes à rusticidade de todo bom e verdadeiro presepe. Estão bem vestidos, e o menino Jesus, José e Maria de trajes relés. Não há humildade neles, e o modo com que levam os presentes me dá a impressão de que estão obrigados, contrariados, indo por ir. Uma vez pensei em bani-los do presépio, mas vovó repreendeu-me severamente, observando a importância deles e tal. Tem também umas pedras grandes, lapidadas, ao lado do berço do menino. A cabaninha de sapé. O José, a Maria, resignados e remotamente felizes. E a arvorezinha de natal ao fundo, triste pinheiro ocultado.

De certa forma, não é muito feliz o presépio. Assentado sobre uma mesinha, com luzes piscas enfeitando-o, é montado na primeira semana de dezembro, quando eu ajudo a desembrulhar do jornal as resinas metodicamente guardadas no ano anterior. Meus outros primos não se importam, nem vêm ajudar, e eu e vovó somos quem montamos. Há todo um processo delicado em como dispor os animais, centralizar a manjedoura, ajustar a estrela no céu, os reis olhando-a... Depois a areia (que sempre busco com um baldinho no quintal da frente), as pedras, a casinha reenfeitada de sapé, capim estragado, os animais, e, por último, os entes, as figuras humanas flaneladas, limpas e coloridas. Nada existe de extraordinário, de novo, de belo. Presépio comum com uma árvore de natal comum.

Era muito provável que o natal sobrevivesse sem aquela árvore desafetuada, que não encerrava em si carinho algum, talvez até pedaços de dores dispersos, sensação divaga de amor ausente. A árvore, por si só, desbotada que era, de fundo, defunta, às vezes doía, mas os outros objetos resgatavam imediatamente a idéia de nascimento, e, conseqüentemente, a idéia do natal. A árvore ali colocada, já há alguns anos, tornara-se um tormento para aqueles que fossem admirar o presepe, e que por descuido e presença, acabavam observando-a. Não diziam nada, mas era como se dissessem: "esta árvore é horrível e não fica bem aí, não". Logo viam, passavam, iam embora, e a árvore, que não tinha nada a ver com a opinião alheia, permanecia rústica desgrenhada, despida e carente. Era arriscado que ela colocasse tudo a perder, e a salvação convertesse exatamente na não-salvação, na degeneração afetiva de uma esperança incipiente e incauta. Eram ‘boas-festas’ falsas, aquelas, escrita em cartolina, no alto, na parede, tinta apagada. Mas no terceiro ou quarto dia, enquanto contemplava o pinheiro estúpido, alguma coisa grave aconteceu, mudando toda aquela estabilidade aceitável e tosca da árvore no fundo do presépio. Pareceu-me mais amena, mais clara, mais viva e com alguma intensidade de amor próximo àquela exigida às vésperas do natal. Minha velha árvore, de repente, aprendera a comportar-se efetivamente como um pinheiro decente e digno de ornamento. Estava mais próxima do que nunca, pois, a felicidade.

De repente, eu sentia muito orgulho dela, gostava demais. Uma realização enorme operara em mim, e fiquei amando a árvore. Fiquei amando minha meninice. Não que ela se tornara bonita, mais verde, maravilhada; mas simplesmente aceitável e fixa, existente em vida, em consideração, em harmonia e solidão. O não-desprezo. Idéia de continuação, de florescência, de mais-mais vida. Triste e quieta e pacífica, no cantinho, sem a turbulência das palavras e olhares falsos. Renovara-lhe alguma coisa intrínseca, próprio do natal, próprio de Jesus. Eu imaginava que ela poderia ser mais útil sem o presépio, num canto qualquer, longe de todas as outras coisas e pessoas. Enormemente só. Enormemente pequena. Simples só e abotoada em amor.

Foi aí então que a roubei, levei até o quintal e despedacei-a. Ninguém notou. E, para sempre, o presépio foi triste e intolerável. Para sempre o Natal foi menos Natal.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 18/09/2008
Reeditado em 18/09/2008
Código do texto: T1183802