O Natal é para mim?

Preparava docinhos para levar à ceia de Natal com a mãe. Infelizmente, faltou açúcar no toque final. Que droga! O mercado devia estar lotado… Por isso, optei por pedir um pouco ao vizinho da frente, o Vladimir. Que mal faria?

 

Eis que o semblante de tristeza dele me fez esquecer totalmente o pedido que pretendia fazer.

 

“O que aconteceu?”, perguntei com preocupação, “Se precisar, estou aqui, tá?”.

 

“Não foi nada. É que me deprimo em datas religiosas. A Páscoa sempre é o pior dia.”

 

“Por quê?”, estranhei.

 

“Sou cristão, mas também algo pior: vampiro.”, falou sem rodeios.

 

Eu gargalharia, mas olhei para a expressão magoada de Vladimir. Não era uma pegadinha.

 

“Tá.”, tentei falar como se não pensasse ser uma alucinação, “E qual é o problema disso?”.

 

“O problema é que sou um demônio bebedor de sangue!”, falou como se fosse óbvio, “Vou ao inferno depois de morrer…”, ele parecia apavorado.

 

Ao lembrar o porquê os vampiros são considerados monstros, dei um passo para trás por puro instinto. Ele percebeu e pareceu ainda mais triste.

 

“Só bebo sangue de javali, cuja caça é permitida. Não que isso seja menos cruel. Sei que estou condenado de todo modo…”.

 

“Não é como se um monte de humanos não fosse para lá também.”, respondi meio sem saber o que dizer, “Sendo demoníaco ou não, Deus fez tudo e todos, incluindo você. Se nasceu assim, é porque Ele quis. Jesus morreu na cruz por todos nós, incluindo os vampiros.”

 

Nunca imaginei que diria algo assim.

 

“Não é o que o calvinismo diz.”

 

“A fé não é ciência. Talvez Calvino estivesse errado; talvez todo o cristianismo esteja errado. Já viu aquele vídeo do Porta dos Fundos?”, sorri ao me lembrar da esquete, mas Vladimir não reagiu, “Se a sua fé está te fazendo sofrer, está crendo errado.”

 

“É, tem razão.”, disse sem soar convencido.

 

Percebi a trilha sonora colocada no prédio pelo síndico e tive uma ideia.

 

“Ei, por que não faz um pedido ao Papai Noel? Vai te fazer sentir acolhimento.”, sugeri sorrindo, “Deixe seu sapatinho na janela do apartamento. Assim, ele deixará um presente de Natal. Afinal, já diz a música tocando, ele não esquece ninguém. Seja rico, pobre ou vampiro, o velhinho sempre vem.”.

 

“Para mim, ele nunca apareceu.”, disse categórico.

 

“Porque você nunca clamou por isso.”

 

Sem pedir permissão, entrei no apartamento, peguei o primeiro sapato que vi e coloquei junto da primeira janela que encontrei. Discretamente, coloquei no sapato todos os docinhos que fizera, sem o acabamento de açúcar mesmo. Paciência. Não sabia se ele podia consumir algo além de sangue, mas o importante era a intenção, não é? A seguir, voltei à soleira da porta antes que me expulsasse.

 

“Feliz Natal! Espero que encontre o amor de Cristo.”, despedi-me sorrindo.

 

É, perdi os docinhos, mas foi por uma boa causa. Desejava que Vladimir parasse de ver problemas em si e conseguisse se aceitar. A mãe entenderia. Afinal, a profecia musical precisava se cumprir: Papai Noel não esquecia de ninguém.