Sem escapatórias

O pai sente a aproximação da filha. Vê-se obrigado a parar de ler:

- Pai, o que é um pênis?

Fecha o jornal, joga-o na mesa de centro, senta-se corretamente no sofá, retira os óculos, coloca os cabelos para trás e se prepara para dar uma bronca na menina de olhos curiosos, boneca de sorriso caótico no braço direito, usando um pijama colorido.

Não eram nem oito da manhã, a menina acordava e já perguntava aquilo? A escola não ensinava nada? Lembrou-se da filha mais velha, psicóloga de formação: pergunta sobre sexo, resposta franca, objetiva e clara.

Esboçou um sorriso. Resposta na manhã subsequente.

Leu capítulos de livros, revistas científicas e de fofocas, pesquisou na internet, consultou uma amiga, psicóloga como a filha.

Antes das seis da manhã, o pai sentiu a filha nas suas costas:

- O que é um pênis?

- Você espera um momentinho? O papai precisa tomar um banho, escovar os dentes, passar fio dental, fazer a barba, cortar as unhas, tirar as espinhas, limpar os ouvidos. Assim que sair do banheiro, eu converso com você.

A menina não aceitou de bom grado a desculpa. Ficaria à porta do quarto.

Ele entrou no banheiro. Fez a barba. Passou fio dental. Escovou os dentes. Cortou as unhas. Limpou os ouvidos. Tirou as espinhas. A menina bateu na porta do banheiro. Por que demorava? Começou o banho. De repente, a janela saltou-lhe aos olhos.

Saiu do chuveiro sem desligá-lo, enxugou-se, revirou o cesto de roupa suja, puxou uma camisa e uma calça.

As pessoas que cruzavam com ele pensaram tratar-se de um bêbado, um fugitivo do manicômio ou da cadeia. Sentado num bar imundo, um poeta apontou para o que imaginava ser um exemplo de um romântico amargurado.

Nesse dia, conheceu a cidade. Visitou livrarias, bancas de jornal e de revistas, passeou pelas ruas de comércio, entrou nos supermercados, nas sapatarias e nas lojas de móveis, tomou sorvete, comeu algodão doce e churros, deliciou-se com cachorro-quente nas sessões das catorze, dezesseis, dezoito e vinte horas de um cinema local. O excesso de cachorro-quente afetara-lhe o fígado. O enjôo se manifestava ciclicamente. Quando menos esperava, um banho verde com quem falava. Pelo menos foi isso que aconteceu quando tentou explicar ao motorista de um táxi o endereço de um banco vinte e quatro horas. Uma senhora, que precisava saber onde ficava o ponto de ônibus mais próximo, também foi atingida.

Saudades. Da cama, do sofá, do jornal da noite, da esposa, da filhinha... A filha entrava na idade das perguntas e a resposta adulta nem sempre acompanhava com rapidez a curiosidade infantil.

Já passava das dez quando resolveu caminhar para casa. Antes das onze e meia subia silenciosamente os degraus que a separava do jardim. Deduziu que todos dormissem, contudo surpreendeu-se com um pulo nos braços quando abriu a porta.

- O que é um pênis?

- Pois bem, disse o pai. Quando o sol das luas de saturno e de marte se entrecruza no espaço, formando aquilo a que Rousseau chamou de estrela da liberdade e que Érico Veríssimo apontou como fonte inspiradora da gênese da saga do povo gaúcho, cria-se uma simbiose de classes e grupos sociais que não corresponde infalivelmente aos anseios dos micro-grupos e que, de alguma maneira, não partilha do mesmo ideal. Por isso, temos cristãos, muçulmanos e judeus que, apesar de acreditarem num ser supremo invisível, ainda não descobriram uma fórmula de se darem as mãos e construírem um mundo melhor, deixando de lado a ascensão majoritariamente patriarcal que está no bojo das três religiões e...

No dia seguinte, acordou e dirigiu-se ao pai, que lia tranquilamente o jornal. Porém, antes que o surpreendesse:

- Respondi a você ontem. Portanto, não me pergunte mais o que é pênis. Não tenho culpa que você tenha dormido.

A menina saíra arrastando sua boneca. Por que não ficara acordada para saber a resposta?

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 29 de maio de 2008.