O homem, seu relógio, seu tempo

Faz muito tempo, nem sei quanto, um entrevistador de televisão perguntou a Ronaldo Bôscoli sobre o seu atribulado romance com a cantora Elis Regina. O compositor respondeu mais ou menos assim: “Nós brigamos porque nossos relógios são desencontrados”. Nunca esqueci a resposta e continuo, até hoje, me indagando sobre o relógio interno dos homens. Sim, pois há um relógio de dentro e um relógio do mundo. E ainda há os relógios da alma de duas pessoas que se amam e nem sempre estão com os ponteiros ajustados.

Atrasam-se ou adiantam-se, aceleram ou param, os ponteiros de uns e os ponteiros de outros. E haja sofrimento!

Sei, e fisiologistas e biólogos nem precisam me explicar, que todos temos um biorritmo. Biorritmo do sono, da secreção das glândulas, dos hormônios, da temperatura do corpo, em função dos dias e das noites.

Sei, amigos da ciência, que tudo se dá em função do dia e da noite; as mulheres parem e nascem filhos mais de noite; há os que escrevem e fazem poesias melhor pela madrugada. O mais interessante, porém, é o relógio da alma, a hora do encontro e do desencontro, o chegar antes ou depois na vida de alguém. É esse tempo que me perturba.

Sei também: a arte do bem viver implica saber lidar com essa entidade abstrata, essa categoria físico-mental: o TEMPO.

Dar tempo ao tempo, esperar no tempo, empregar a palavra correta no tempo preciso, compreender o tempo histórico, dividir o tempo ou vivenciá-lo, só os de bem com a vida sabem como fazê-lo com maestria.

Para o filósofo alemão Martin Heidegger, o tempo do mundo e o vulgar dos relógios não é o mesmo do tempo interior, este sim, bem mais rico e inacessível às quantificações dos algarismos arábicos e romanos. O tempo de dentro é uma eterna sucessão de momentos carregados de passado, presente e futuro, nem sempre lineares e às vezes invertidos.

Bom mesmo é quando o nosso tempo corre impregnado do futuro, do amanhã. Olhar para a frente não é sinônimo absoluto de felicidade, mas pelo menos é apanágio de autenticidade, do futuro determinando o passado e o presente. A infelicidade dos mortais são os cronômetros do mundo externo: nunca se combinarem e se ajustarem com os relógios internos, levando-os a uma constrangedora luta inglória. Para complicar mais ainda os relógios, algumas pessoas batem não só fora do compasso, mas também de tom. Infelizmente, nem todos podem viver o tempo como desejariam que fosse, e o fazem como podem. Vivem, como falam os existencialistas, uma vida vivida, mas nunca existida. A maioria dos seres mortais – coitados! – percorre passado, presente e futuro como se fossem três pontos espaciais de finita linha sem maiores dimensões humanas.

Uns preferem caminhar pelo passado, presos às frustrações, às perdas, aos equívocos cometidos ou às falsas glórias. Tal como os deprimidos, caem no pretérito perfeito ou imperfeito de suas existências repletas de culpa e de mágoas, matando o presente e inibindo o futuro.

O deprimido, o fraco, é incapaz de se libertar do que foi.

Outros fazem da vida, sucessão de pontos do presente. A vida para eles é um eterno carnaval, permanente aqui e agora, como se depois dos três dias de folia nunca acontecesse a tristeza da quarta-feira de cinzas. Os drogados pelas drogas, os drogados pela comida ou trabalho, pela busca desesperada do dinheiro ou vaidade, vivem com fanatismo o presente.

Aceleram a vida de acordo com os prazeres da mesa e da cama, degustados ao sabor do momento. É como se as tristezas do passado não existissem e o futuro fosse mera sombra do presente quando este vier a acontecer.

Há ainda os que, como em Marcel Proust, vivem a busca do tempo perdido, mesmo com receio do futuro e desconfiados do presente.

O porvir, o amanhã, é sempre a terrível carga pesada a enfrentar. São os medrosos de encarar o novo, romper as amarras do passado, descortinar o horizonte, levantar vôos da imaginação criadora. São os claustrofóbicos da burocracia, neuróticos medíocres do medo de viver, de dominar as adversidades, ultrapassar os próprios limites da pobreza de espírito. Os ponteiros do relógio só marcam segundos, nunca avançam nos minutos, horas, dias, meses, anos e séculos. O neurótico tem medo do futuro porque não caminhou seguro em seu passado. Fica apavorado com temor do futuro repetir o passado. O seu relógio interno não marca o tempo suficiente para avançar na cronologia do mundo.

Feliz é quem pode inverter o relógio biológico da vida, como diz Will Durant, sobre Anatole France: “Foi octogenário aos quarenta e um rebelde cheio de otimismo da mocidade aos oitenta”. É ainda do próprio escritor francês: “Se eu fosse a natureza, não faria o homem e a mulher à semelhança dos grandes macacos, mas à semelhança dos insetos que depois de um período de lagarto viram borboletas e na última parte da vida só pensam em amor e beleza. Eu poria a mocidade no fim da existência humana...”

“...Arranjaria que o homem e a mulher, desdobrando rutilantes asas, vivessem por um tempo no orvalho e no desejo, e morressem num beijo de êxtase”. Inverter o relógio da vida biológica transformando-o em seu relógio existencial é privilégio de gênios como Bertrand Russel, Sartre.

Feliz é quem, mesmo lamentando o que não fez no tempo perdido, possui consciência poética de como faria se vivesse de novo.

Jorge Luís Borges, em seu poema “Instantes” diz que se voltasse a viver cometeria mais erros, não tentaria ser perfeito, se relaxaria mais (....) correria mais riscos (....) começaria a andar descalço nos princípios da primavera e seguiria assim até concluir o outono.

Infelizmente, como afirma no final do poema: “Pero ya vem, tengo 85 anos y sé que me estoy murriendo”.

O tempo, essa terrível categoria Kantiana pode estar parado, correndo para frente ou para trás em nossos espíritos. Andar apressado ou devagar ao sabor de nossas mentes. Os dias e as noites podem caminhar longos ou curtos, claros ou escuros, calmos ou atormentados. Podemos parar o fluxo do tempo em ponteiros pesados de passado, com medo de levitar no presente ou emergir para o futuro.

Quando estamos tristes, o tempo demora a passar, como numa tarde chuvosa onde os telhados são cinzas e as ruas (espaços da alma) parecem mais estreitas. Ao contrário, quando felizes, as horas saltitam de alegria e os tempos dos relógios internos parecem sucessão de minutos bem vividos.

Hoje, madruguei acometido de minhas raras certezas metafísicas: há pessoas que nunca se acertarão nos ponteiros das horas. Há os que chegam atrasados ou adiantados em nossas vidas, o que torna o existir, nesses casos, uma gangorra cheia de mistérios.

E esses mistérios do tempo vivido de cada um dos que se amam, são insondáveis e impenetráveis. O que, sem dúvida, torna o viver difícil e perigoso.

Maurilton Morais
Enviado por Maurilton Morais em 23/01/2006
Código do texto: T102906