O GRITO QUE NÃO QUER CALAR*

Naquele dia senti a falta dela. Mesmo que sua deficiência a impedisse de falar e escutar, ela era uma das minhas alunas favoritas. A presença dela era animadora. Só no olhar e nos gestos, percebia-se que ela não fazia apenas parte de tudo, mas que aquele todo não seria completo sem ela.

Naquele dia me senti agoniado, enquanto ministrava as aulas de teatro, quando percebi que ela não se encontrava no lugar que sempre ocupava, e é claro, sem ver o sorriso e a gratidão vinda dos olhos dela. Não sei porquê, mas minha impaciência começou a me incomodar. E logo depois disse aos alunos: “Todos pra casa, até quarta”, hesitei um pouco, e involuntariamente, percorri o mesmo caminho que ela fazia, todos os dias, ao ir embora. Depois fui até a coordenação e perguntei, ansioso, se alguém tinha notícias dela. Fui surpreendido. Surpresa esta que não desejo a ninguém.

- Ah, professor, você não soube o que aconteceu com ela?

- Não.

- Saiu no jornal. É melhor o senhor mesmo ver. Notícia triste. Mas cada vez isso fica mais comum por essas bandas.

Ao me entregar o jornal, vi que era o Caderno Polícia. Meu corpo gelou. Estampada no meio da página, havia a foto de uma garota com o rosto na lama, calças rasgadas, bundinha de fora, e as mãos apertadas, se contraindo no chão, com toda a força que podia. Ela tinha sido estuprada e assassinada no caminho de volta pra casa. Mais uma criança de quem foi tirado o direito de viver. Minhas lágrimas começaram a sair fininhas. Um retrato da minha impotência diante daquele fato. E mais um retrato da impunidade que cega e cala seres indefesos no sub mundo brasileiro.

*Texto baseado em fatos reais.

Soane Guerreiro
Enviado por Soane Guerreiro em 14/06/2008
Código do texto: T1033539