RESSACA

RESSACA

Isso lá são horas de um pai de família pobre acordar? Penso que não, e até fico contrariado com tal coisa, mas eu precisava me recompor; bebi muito esta noite e quando o sol raiou este monte de carne endurecida pelo tempo, que carrego comigo, não quis conversa, permaneci deitado e dormi de novo. Esse segundo sono, contudo, não estava nada agradável; fiquei horas procurando me desvencilhar de um policial teimoso que queria ver a minha carteira de motorista a qualquer custo E finalmente acordei quando ele quis cheirar a minha boca. Acho que estava sem o bafômetro.

São dez horas; nem está tão tarde assim, e eu também sou filho de Deus, embora Dimas, o bom ladrão, meu amigo, não acredite nisso. Aliás, ele anda muito preocupado com as minhas, no seu entender, prováveis relações com satanás. É um religioso fanático que faz um esforço danado para me evangelizar. Para isso até me emprestou um livro de Ellen G. White – O GRANDE CONFLITO. E porque achei o livro horroroso ele partiu para os extremos e disse, inclusive, que eu havia me tornado um energúmeno.

E também não tenho nada para fazer na rua a não ser gastar gasolina (desconfio que quase todos os advogados estão assim). E me parece que ficar em casa escrevendo bobagens, ou dormindo, é muito melhor que gastar gasolina à toa e correr o risco de enfrentar cobradores chatos. Os cobradores ultimamente estão como marimbondos em volta de mim. É verdade, nunca contrai tantas dívidas na vida como fiz neste resto de ano. E a minha capacidade de pagamento, pelo menos por enquanto, que a justiça virou uma pouca vergonha, é zero. Portanto não é possível ir para a cama sem estar encharcado de cachaça.

Não estou fazendo apologia do álcool, e muito menos achando que encher a cara é solução para os endividados. Todavia, no meu caso ele funciona como um empurrão num carro velho que não quer dar partida no motor. O que me preocupa, entretanto, é que posso morrer no meio da noite em função da hipertensão.

Mas o que me trouxe aqui para o computador foi outra coisa: a inauguração do novo fórum de Caetité, que aconteceu ontem à noite. O juiz de lá mandou convite para o presidente da nossa subseção, extensivo a todos os advogados nela inscritos. Tive vontade de comparecer somente na hora do coquetel, mas, Caetité fica muito longe, desisti.

Quando fui comprar pão à tardinha, fiquei numa fila composta de mulheres horrorosas, cerca de dez, e enquanto esperava a minha vez, morrendo de raiva, porquanto tenho horror a filas, imaginei-me no coquetel diante de coisas feias como aquelas. Desisti de novo. Além disso, já sou um velho. E o mínimo que se pode esperar de um velho, é que ele tenha juízo; viajar oitenta e tantos quilômetros, à noite, e com o rabo cheio de cachaça, é coisa para irresponsável, ainda mais quando se tem filhos pequenos e maravilhosos como os meus (velho também pode ter filhos pequenos). A propósito, um dia, quando eles eram ainda menores, eu estava, como fazia sempre nos finais de tarde, andando nas calçadas das ruas segurando em suas mãozinhas, e uma velha asquerosa perguntou se eram meus netinhos. Eu tomei um grande susto ao ouvir tal coisa; ninguém antes havia me feito pensar nos meus inúmeros janeiros. Velha maldita.

Voltando ao assunto de centro, alguém mencionou, ontem mesmo, possivelmente a propósito de inaugurações de fórum, não me lembro direito, que um dos ministros de um tribunal de Brasília havia dito que fazer um fórum é mais fácil do que prolatar uma sentença. Achei isso revoltante. Esse pessoal ganha tubos de dinheiro para fazer a justiça funcionar, não faz, e ainda fica gozando da cara da gente. Deixa estar, jacaré; um dia a lagoa há de secar.

E a construção de fórum aqui e acolá é também uma tremenda gozação, coisa para inglês ver. Todo mundo sabe que a bosta da justiça não funciona porque não há juizes, e os que estão aí, salvo raríssimas exceções, não querem nada com a hora do Brasil. Espaço para trabalhar sempre tem, é só querer. O fórum daqui, por exemplo, tenho reparado, é enorme, e passa semanas, meses e anos, ocioso. Não vejo acontecer nada, não há ninguém trabalhando lá. Há meses não vejo a cara de um juiz lá dentro. E mesmo assim, querem construir outro também. Estão, na verdade, brincando com o dinheiro público e, repito, gozando com a cara de todos nós advogados e jurisdicionados. Eles querem mesmo é que nós nos fodamos.

A coisa ficará séria, entretanto, a partir do momento em que se instituir que o juiz deva ganhar por produção, como fazem no corte de cana. Aí ele vai saber quanto custa o dinheiro do povo; vai parar de cozinhar o galo e se rebolar para ganhar seus dez mil reais por mês. E não me venham dizer que tal medida favorece a corrupção, e mais isso e mais aquilo, porque tem solução na corregedoria, desde que a façam funcionar também, claro.

No corte de cana é assim; ou trabalha muito ou ganha pouco; são toneladas de garapa por dia que cada homem retira da roça. (Esta coisa ficou muito séria, vou dar mais um gelo nela: me disseram que garapa sofre pra burro até virar rapadura. É o que ocorre com a petição inicial até virar sentença). Já pensaram como seria bom se um juiz despachasse uma tonelada de processos por mês?

Quem mexeu com esse negócio de corte de cana e juiz foi o Lula, e quem não gostar do que escrevi aqui que vá resolver com ele.

Bem, acho que já posso parar. E o que acabo de ver agora é assustador, e se o Deus de Dimas não tiver pena de mim eu tô lascado: no meu cinzeiro, aqui do lado, tem quinze tocos de cigarros, cerca de oito dos quais, fumei em menos de uma hora.

Agora vou dormir, desta vez sem cachaça, e com muita raiva do ministro.

José Alípio da Silva
Enviado por José Alípio da Silva em 29/01/2006
Código do texto: T105485