SOBREVIVENTES

Recebi um email de uma amiga que falava de como a geração que teve sua infância nos 60, 70 e 80 conseguiu sobreviver. Acho que me identifiquei com 90% do que continha a mensagem e agora me considero um sobrevivente.

Mas como foi bom sobreviver a todos aqueles “perigos”, a “arriscar” a vida pulando o muro para fugir da escola aos sete anos, como era gostoso correr esses “riscos” e provarmos que não éramos medrosos. Quantos riscos corri indo à praia escondido, levando cortes nas pedras e mesmo que precisasse de pontos, tinha que esconder para não levar broncas da mãe e o corte sarava na marra, calçando tênis, sujando de areia e mesmo assim sobrevivi sem pegar tétano ou qualquer outra infecção. Sobrevivi a dois afogamentos, um graças a um amigo e outro porque a maré estava rasa no dia, mas eu sobrevivi. Sobrevivi às batalhas de mamonas, aos carrapichos jogados nas costas, às brigas nos finais das peladas, depois das festas vespertinas, após as aulas, afinal sempre houve rixa entre turmas, só que não usávamos facas, revólveres, nossas armas eram baladeiras, ou estilingue como queiram, eram pedras, eram socos. E hoje, muito daqueles que eram nossos inimigos ferrenhos, são nossos amigos.

Naquele tempo não ouvíamos falar em bullying, todas pendências de colégios eram resolvidas no recreio ou na saída da aula, nem que isso significasse um olho roxo, alguns cortes, mas nada que pai e mãe precisasse saber ou que nos deixasse traumatizados, não lembro de psicólogas ou psiquiatras nos colégios onde estudei, éramos encaminhados logo à diretoria sempre que abusávamos um pouco mais em sala de aula e como abusávamos, se o abuso era muito, éramos suspensos e voltávamos dias depois, muitas vezes como heróis para os colegas e pequenos bandidos para os professores e nenhum trauma ficava em nossas cabeças. No colégio podíamos até implicar com os sabe-tudo da sala, CDF era um termo que não existia, mas jamais tocávamos neles, nossas brigas eram com os "inimigos" de outras salas. A classe tinha apenas três divisões, a frente, o meio e o fundão, e o fundão sempre era mais divertido.

Sobrevivi a inúmeras quedas de bicicletas em calçamentos, as viradas nos carrinhos de rolamentos nas piçarras. Sobrevivi à carona pendurado nos trens; sobrevivi de pulos dos ônibus para não pagar passagem; sobrevivi aos inúmeros cortes nos pés com cacos de vidros; sobrevivi a joelhos ralhados pelas calçadas; sobrevivi a braços cortados no arame farpado das cercas que não nos impediam de entrar no cercado para jogar bola ou roubar frutas; sobrevivi a corte nas mãos com o cerol das pipas. Sobrevivi à brincadeira com o Rinte e o Rex, meus dois cachorros vira-latas, que nunca usaram xampu, sabonete e só tomavam vacina quando passava os agentes de saúde uma vez por ano, cachorros pés-duros que não sabiam nem que era ração, mas que nunca passaram qualquer doença para nós. Sobrevivi às quedas das mangueiras, goiabeiras, cajueiros, afinal as melhores frutas estavam sempre nos galhos mais altos e mais finos. Sobrevivi a choque elétrico, quando resolvi desligar a tomada do ventilador com uma faca sem cabo. Sobrevivi a passar horas na lama apanhando minhocas para alimentar os peixes que criava para brigar com os peixes dos amigos.

Pois é, eu sobrevivi à minha infância, dessa guerra que tenho saudades, ficaram as marcas nos pés, pernas, joelhos, cotovelos. Mas as melhores marcas dessa “difícil” sobrevivência ficaram na mente e no coração. Uma guerra, que agora sei, não houve perdedores ou vencedores, mas felizes sobreviventes de uma geração que soube ser criança.