Dói descobrir esse ele de ti, dentro de mim. Esse “q” que se abriga dentro dele, que escorre por sua boca entreaberta enquanto dorme, corpo exaurido por tudo o que sonha e nada consegue realizar. E essa brecha de tempo incólume à sua frente...
Ele, bem que tenta passar a cabeça pela brecha, mas ela a aperta e ele fica lá, com a cabeça espremida na brecha. E seus pensamentos se embolam ainda mais.
Nesse buraco no tempo que não é nem livre, nem morto, nem reto, nem torto, só escuro e não, caos. Ele não pensa, não executa, não se satisfaz, em nada abstrai.
Com a cabeça a prêmio, encravada na brecha do tempo, a bunda exibe exposta.
As contas continuam chegando, carcomendo as esperanças, nitidamente embaçando os seus vãos orbitais. Mas, ele ainda assim suspira, um suspiro seco e sem graça. Nem a cachaça lhe encheria de novos apelos.
- E o fio de prata, não o solte! Segura firme ai, rapaz!
- A paz existe e a felicidade é certa!
- Onde? Onde? Não vejo nada por perto. Só olhares e comentários escusos, sussurros, zombarias atravessam meus ouvidos na madrugada em que me encontro. E o que dele permanece em mim.
Seguro a pilastra, e o tempo desaba...
Em minhas costas só os vãos do arado aberto a chibatadas, na digna conquista do homem por progresso. Progresso?
A brecha que já era pequena começa a se fechar.
- Pare o tempo!
- E quem disse que ele andou?
- Pare o relógio, o ponteiro, o segundo!
- Respire fundo... Acredite que há tempo; que há esperança; que há futuro; que há amor!
- Escuto um rumor, vem de longe e de perto, ecoa no oceano. Ou serão mais pensamentos, degenerando em mim?
- Ora, cale a boca! Como ousas achar que pensas algo que preste, com a cabeça encravada nessa fresta?
- Ora, cale-se você seu filho-da-puta, que pensa que sabe o que dizer numa hora como essa.
- Que quer que eu faça, que te espante as moscas do rabo?
- Ora, vai a merda! Arrume logo algo que alargue essa brecha.
- Quem, eu? Você só pode estar louco, como eu faria isso? Quem te mandou enfiar a porra da cabeça ai?
- Ajuda só a temos na hora do parto e quando a temos...
- Se vira!
- Quer saber... Vai se foder longe de mim! (...) - Espera, volta aqui! Pensa em alguma coisa, me tira daqui.
- Já te disse, esquece! Morre logo, exploda-se já que de nada és capaz!
- É claro que sou capaz, tudo bem que, ainda não sei de quê... mas, sou capaz, sim!
- Tu és um grandessíssimo babaca, isso sim! Quem mandou ter a "brilhante" idéia de enfiar a porra da cabeça no buraco? 
- Ora seu filho de uma puta, se não és capaz de me ajudar, também não me atrapalha. Uma hora alguma coisa acontece, e eu consigo desentalar minha cabeça daqui. E aí, você se prepara que eu te pego!
- Pega...pega nada. Nem me abalo, sei, vais morrer aí sufocado.
- Já que ainda temos algum tempo, antes que essa brecha se feche, me faça um favor: Cale a boca e me arranje o que comer, tô com fome e cansado de ouvir você.
- Pensando bem, agora te observando com esse rabo empinado... Vou é passar mel na tua bunda. Quem sabe as abelhas te descobrem e com a dor das ferroadas você não desentope e passa de corpo inteiro para o outro lado?
- Não ouse fazer uma barbaridade assim! Se me livro antes daqui, te cubro de porrada.
- Cobre o quê? Não consegue cobrir nem a própria vergonha. Entalado até o pescoço numa brecha do tempo, nem consegue reagir... Nem pensar, ou definir uma estratégia que resulte sua saída daí. Dizem que é comum, quando alguém se encontra em uma situação como a sua, perdido e entalado, sem saber o que fazer para sair de onde se enfiou. Que se aproximem desse infeliz, e o ajudem, a se enterrar ou sofrer, como queira, ainda mais. Já que tô aqui de bobeira, e no íntimo quero é ver tua caveira, penso: E por que não...?
- A vida dá voltas...
- Se a vida dá voltas, penso que tu vais ficar ainda mais ridículo ai girando nessa posição em que se encontra.
- Idiota!
- Você que está fodido e o idiota sou eu? Sei...ahã...ahã...
- Idiota! Idiota!
- O que estás vendo aí do outro lado?
- Nada! Absolutamente tudo um breu, só vazio.
- E o idiota sou eu... – Balbuciou enquanto pintava um alvo, com tinta guache, na bunda do entalado.
Jaqueline Serávia
Enviado por Jaqueline Serávia em 09/07/2008
Reeditado em 24/07/2008
Código do texto: T1072281
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