Como se forma um advogado

Estudava Direito e tive professores bons, regulares e ruins, como em qualquer escola. Pretendia ser criminalista, e realmente fiz diversos júris. O Tribunal do Júri realiza qualquer advogado honesto. O profissional é um misto de ator e advogado.

Mas não é o fato que desejo narrar, aconteceu comigo e é verdadeiro.

Tinha uma insuportável e bastante limitada professora de Direito Civil. Só estudava com afinco Direito Penal. Fiquei em segunda época no direito que mexe com o bolso dos outros, na maioria das vezes.

Costumava tirar férias no trabalho em fevereiro, e a prova estava marcada para o dia 17 daquele mês. A Vila Real da Praia Grande, como gosto de chamar Niterói, tem lindas praias oceânicas, acessíveis em vinte minutos de automóvel. Ficam literalmente lotadas hoje, mas naquela época a freqüência era bem menor.

Itacoatiara é um pequeno paraíso. Praia pequena, de apenas seiscentos metros, areia branca de doer os olhos com o reflexo solar e toda cercada de montanhas.

Os pinheiros que estão plantados junto ao início da restinga muito bem conservada, como em todas as praias estão vergados em direção a terra, como é costumeiro; a ação constante dos ventos marítimos leva a esta inevitável posição.

Era a minha segunda casa. Chegava às dez da manhã e voltava, quando voltava, por que um amigo nosso tinha casa lá, ao entardecer. O quiosque que vendia sanduíches, ovos cozidos, cerveja e pratos simples, servia de nosso requintado restaurante.

Estava moreno que só os dentes apareciam, durante a noite. A maldita prova aproximando-se e eu sem abrir o livro. Até hoje não suporto Direito Civil, mas felizmente a carreira de advogado está encerrada.

Chegou o dia da prova. Olhei-me no espelho, depois do banho. Com muitas picadas de mosquito, que infestavam Itacoatiara durante a noite, pele enegrecida, não enganava ninguém: malandro de praia, o que eu era realmente durante um mês.

Na hora certa, estava fazendo a prova escrita, uma lástima. Logo em seguida seria a vez da prova oral. E assim foi.

A professora não tirava os olhos de mim. Sem dúvida, iria prosseguir meu curso, mas faltando quitar o Direito Civil, que eu contava com outro professor, este um jurista, para ser aprovado. A catedrática estava admirada com um aluno de segunda época todo picado de mosquitos e bem tostadinho. Vagabundo, na certa.

Vi com um colega de turma um jornal que estampava uma manchete “Guerrilha no...” e mais não se via. O jornal, naturalmente, estava dobrado. Pedi ao colega que me dissesse do que se tratava, e ele mostrou a notícia. Era “Guerrilha no Caparaó é sufocada.”

Foi o que bastou. Quando fui chamado, sabedor do extremo reacionarismo da examinadora e admiração pelas forças armadas subi o pequeno degrau do tablado e com se militar fosse, cumprimentei ereto, quase em continência, a mulherzinha intragável. Não tive a menor dificuldade em pedir desculpas pelo meu desempenho na prova escrita, falando com todo o respeito. Por causa do calor, cortava o cabelo como os militares; não esquenta a cabeça. Continuei a minha fala, afirmando que era segundo-tenente do Exército, por ter feito o CPOR, e como era bom aluno e excelente com uma arma na mão, fui convocado a participar do combate, falando em voz baixa e afirmando que só estava confidenciando o fato por conhecer a posição política e a honestidade da mestra. O vilão transformou-se em mocinho como num passe de mágica. Seus olhos mudaram de expressão. Ela estava diante de um herói, queimado de Sol, magro, com pontos vermelhos na pele. Um valente soldado que estava a serviço da Pátria.

Disse que por este motivo, não havia estudado o suficiente, apenas alguns pontos. Imediatamente, ela me perguntou quais pontos. “Prescrição, decadência e perempção”, falei de imediato. São causas que impedem ou paralisam o processo, e muito usadas em Direito Penal. Pediu que falasse sobre o assunto. Fiz o discurso completo. Uma vez terminado, ela me cumprimentou solenemente, garantindo-me um dez que fez o mentiroso passar de ano.

Comentei o fato com um amigo juiz de Direito, velho conhecido e bem jovem.

Ele simplesmente disse “vais ser um excelente advogado, meu caro.”

Mas não. Cedo desisti da tribuna do Júri. Não fui um advogado brilhante, não gosto muito da profissão. Mas obtive uma vitória num Tribunal Militar, duro, duríssimo, que jamais será esquecida. Além de elogiado pelos colegas, foi notícia em todos os jornais do Rio de Janeiro e Niterói. Tinha, na época, vinte e quatro anos de idade.

Mas isto apenas foi uma fase...

Jorge Cortás Sader Filho
Enviado por Jorge Cortás Sader Filho em 16/07/2008
Código do texto: T1083619
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