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EU,  MEU PAI E O ESPELHO
 
Hoje, olhando-me num espelho, fiz uma viagem ao passado. Tenho mania de me olhar no espelho. E não é uma mania nova. Penso que o meu lado descendente de índio- (sou tataraneta de uma, apesar de não parecer) – tem haver com isso. Deve ser coisa de DNA mesmo. 

Lembro-me das brigas de meu pai comigo, na sala de seu escritório. Na época, ele havia comprado um conjunto de salas de um artista plástico e não tendo tempo para reformar, nem dinheiro na época, um paraíso de espelhos da parede até o teto foram deixados por lá. Não estou enganada não, não era um motel. Eram salas de um artista, talvez um pouco narcisista. Para mim o lugar era perfeito. Eu podia me olhar dos lados, de trás, de frente, de cima. Calma gente. Embaixo era carpete. 

Era só ter uma folguinha, lá estava eu olhando para eles de frente comigo, arrumando o cabelo, passando batom, ajeitando a roupa, me olhando de cima embaixo, lendo a minha alma e sonhando. Eu chegava até conversar com eles. Altos papos! Volta e meia era pega de surpresa pelo meu pai. Enfurecido ele bronqueava: - dá pra largar esse espelho um pouquinho. Eu saia rindo e ele danado da vida querendo me esgoelar. 

Imagine qual era a relação de um pai que fora preso na chamada revolução de sessenta e quatro, considerado pelo regime militar como um comunista, com um espelho. Poucas pessoas têm noção disso. Vaidades para quê, isso não levava ninguém a lugar nenhum. O importante era aprender a lutar pela nossa nação. Disso eu nunca discordei, afinal desde recém-nascida fui amamentada por essas idéias. A minha discordância era apenas quanto a não poder ter vaidades normais, um batom não roubava ideais. 

Ele, no entanto, era rígido nos seus propósitos. Em nossa casa não entrava nada estrangeiro. Não se bebia Coca-cola, só se colocava gasolina em postos da Petrobrás (quando jovem, ele havia participado da Campanha “O Petróleo é nosso”). Ele tinha até uma cartilha chamada “Brasilino” (aliás, ela ainda existe nos seus guardados) que ele nos fazia ler e reler, onde os produtos estrangeiros eram desdenhados. 

Televisão, na minha casa, demorou a chegar. Eu já tinha quinze anos quando ele, depois de muita discussão, permitiu a entrada. Se tem algo que jamais poderei reclamar de meu pai é dele cercear a maneira de qualquer pessoa pensar e nunca ter proibido alguém de se expressar. Apesar de numa discussão o máximo atingido com ele é um empate, nunca uma vitória.  E nesse caso, eu empatei com ele e mesmo assim fui obrigada a assinar um termo cheio de tópicos dos malefícios que a tevê traria. 

No primeiro tópico, a preocupação era de eu e meus irmãos deixarmos de ler. Nos próximos, deixaríamos de pensar, seriamos levados a consumirmos coisas sem necessidade, as conversas na mesa acabariam e por aí vai. Esse documento, agora já amarelado pelo tempo, meu segundo filho guardou, para prosperidade. 

Afinal, a TV chegou, alguns tópicos como consumismo desnecessário se consumiram de fato, mas outros não aconteceram. Um deles, era a sua exigência em ler o jornal. Éramos, na época, seis filhos, hoje, somos sete. 

Ele não exigia a leitura completa do jornal, ele mandava recortar o que cada um achasse interessante e na mesa do jantar cada um tinha que reportar a notícia lida, enquanto os outros eram convocados a debatê-la. Detalhe, não tinha como enganá-lo, porque ele havia lido o jornal de cabo a rabo e sabia de tudo (hoje, aos oitenta e cinco anos, ele continua lendo o jornal do mesmo jeito e ainda é um trabalhador ativo). Nessa hora, nem minha mãe, nem minha avó escapavam. Ele nos dizia: - estou preparando vocês para a vida, sem conhecimento, vocês não chegarão a lugar algum. 

O tempo passou, passou por mim como o vento nos meus dias de sol, nos meus temporais, nos meus tsunamis. Percebo, agora, neste sábado frio de sol preguiçoso, aos cinqüenta e quatro anos, que continuo fascinada por um espelho. Lá estão guardados meus segredos e todos meus sonhos. E lá a birra do meu velho pai  nunca teve vez.