REFLEXÕES DE UM SÁBADO À NOITE

São 23h15 de um sábado. Cheguei a meu apartamento há pouco mais de quinze minutos. Fazia tempo que não saía em uma noite de sábado. Um amigo meu convidou-me para sairmos hoje.

Depois de muito relutar, acabei aceitando o convite. Digo relutar porque já faz muito tempo que não vejo mais encantos nessas aventuras noturnas. Não sei se é porque estou ficando velho (tenho 39 anos), mas a sensação que tenho quando saio de meu apartamento - não importa meu destino e muito menos a hora em que saio - é que tudo já foi visto, falado ou escutado.

Alertei meu amigo sobre a possibilidade de eu querer retornar assim que chegássemos a nosso destino. Não obstante ele insistiu, e eu aceitei o convite. Dito e feito: não passei mais de dez minutos no lugar em que ele me levou.

No caminho, meu amigo fazia planos para a noite. Era todo entusiasmo. Ficaríamos algum tempo em um bar bastante badalado e depois iríamos a uma boate também 'da hora'. Ele repetia, tal qual um adolescente, que esses lugares estavam 'bombando'.

De fato o bar tinha um aspecto bastante agradável. As pessoas que lá estavam eram 'belas'. Era uma tribo 'alternativa', homens e mulheres na faixa dos 25, 30 anos, vestiam-se com roupas folgadas e coloridas, lembrando um pouco os hippies do passado.

Mas o vaivém das pessoas dentro e nas proximidades do bar (muito apertado, impondo um roçar forçoso e uma intimidade ríspida entre os corpos que dividiam espaço tão ínfimo), o burburinho e as conversas entrecortadas, causaram-me um espécie de náusea (lembrei de um romance de Sartre chamado 'A Náusea', em que ele descreve muito bem essa sensação em um personagem perturbado e misantropo).

Homens e mulheres desfilando para verem e serem vistos, a algazarra dentro e no entorno do bar, um grupo musical que tocava chorinho, as vozes embargadas de álcool e cigarro; tudo aquilo componha para mim um quadro desolador de extremo tédio e repetição. Parecia que eu voltava há 10 ou 15 anos atrás, quando me aventurava nos finais de semana noite adentro, embriagando-me em excesso, fumando muito e em busca de mulheres.

Algumas vezes comia alguém, muitas vezes não. Repetia sempre os mesmos gestos, as mesmas conversas e sempre acordava ressacado.

Não pude me conter. Bebi apenas um copo de cerveja, despedi-me às pressas de meu amigo e saí quase correndo, fugindo daquele filme antigo , cujo roteiro e falas sei de cor, posso repetir de trás para frente.

Fugi desesperadamente dali, corria de meu passado, querendo voltar logo para a segurança de meu apartamento, para a mudez e silêncio de meu presente. Mas parei em uma lanchonete, repeti de novo o passado (as noites que não se encerravam com sexo, passavam por alguma lanchonete, onde embriagado, empanturrava-me de porcarias, sem nunca sentir o sabor daqueles insalubres quitutes, antes de chegar - não sei como - em casa e desmaiar na cama).

Fiz uma refeição nem um pouco saudável, composta de hambúrguer, bacon, queijo, ovos e coca-cola, e só então me dirigi ao ponto de ônibus.

Às 22h30 embarquei angustiado e ofegante no coletivo. No trajeto desejava logo chegar ao meu apartamento. Havia crentes, casais e bêbados no ônibus; todos eles me enfastiavam.

Eu estava quase que fisiologicamente enojado de tanto dissabor em estar com aquelas pessoas feias, cujos gestos conhecia de épocas de antanho. O pior é que eu me via naqueles rostos.

Eu era os crentes, os casais de adolescentes que iam e viam das algazarras, os bêbados fétidos e incômodos que não paravam de gritar palavrões. Ansiava pelo silêncio de meus aposentos. Queria chegar, deitar, acender um cigarro e ler um livro.

Mas eis que ao chegar ao refúgio de meu lar, sou surpreendido por um barulho ensurdecedor que parecia vir de todos os cômodos do apartamento. Ocorre que em um casarão que fica em frente ao prédio em que moro um senhor aparentando ter cerca de 50 anos tomava uísque à beira de sua piscina, ouvindo músicas em altos decibéis.

Ele estava só, depois chegou um outro individuo. As músicas se sucediam em volume muito alto, e dois para se comunicarem gritavam um para o outro. Eram cerca de 23h.

Moro em uma área residencial, tenho vizinhos de idade avançada e crianças. Pensei como aquele senhor podia ser tão mal educado, não respeitando a vizinhança que queria dormir. Fiquei na janela da sala, olhando fixamente na direção de meu vizinho estúpido, queria constrangê-lo, fazer com que ele notasse que estava causando transtornos.

Pensei em descer, ir até a casa dele, externar minha insatisfação e pedir com gentileza para ele abaixar o volume das músicas. Pensei em gritar da janela para que ele diminuísse o volume, pensei em chamar a polícia (cheguei a discar o 190, mas não completei a ligação), pensei em tantas coisas, mas não tomei nenhuma atitude.

A raiva apoderou-se de meu ser e senti-me impotente, nenhuma atitude valia a pena. Desisti, simplesmente desisti e fiquei ali parado na janela.

Voltando ao presente. Agora são 23h45, já escrevo há trinta minutos. Não sei se conseguirei dormir. De quando em quando volto à janela, o som da festa a dois de meu vizinho continua alto, ele continua lá, bebendo seu uísque e gritando junto com o amigo. Não vou fazer nada. Estou resignado.

Seja na rua ou meu apartamento, não há lugar para mim. E não é porque o filho da p... de meu vizinho está se embebedando de uísque, em alto e bom som, quase à meia noite, que estou mal. O problema não é ele, sua falta de educação, nem a música alta. O problema não estava no bar em que comecei esta noite, nem nas pessoas que o freqüentam, muito menos nos crentes e feios do ônibus.

Agora que escrevo parece que as sensações e impressões que me acometiam vão se tornando claras. O incômodo está aqui dentro. Está em mim, dentro de mim. Eu sou os freqüentadores do bar, eu sou o bar. Eu sou as pessoas do ônibus, eu sou o ônibus. Meu vizinho estúpido e sem educação sou eu. Todos eles são reflexos de mim. São meus pares e semelhantes.

É isso o que mais me dói e por isso não há saída. Então ainda bem que não briguei com meu vizinho e nem chamei a polícia.

Meia-noite. Vou dormir. O barulho ainda é alto, mas estou em paz. Não posso combater a gênese de todo esse mal estar. Só dormindo a angústia cessa, até o sol nascer de novo. Boa noite.

P.S. Puta que pariu! Este filho de uma puta não abaixa a porra desse som de jeito nenhum!

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 24/07/2008
Código do texto: T1095160
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