FATOS FATAIS DE INSANOS MORTAIS

(Todos nós vivemos experiências parecidas. O que distingue nossas ações é a proximidade com a insanidade (CCF).

Fazer pequenas ou grandes compras em hipermercados tornou-se um hábito mais que natural entre os moradores das grandes cidades. Em São Paulo então é como ir à praia para os cariocas. Conforto, praticidade e segurança, tudo num lugar só. Pessoas sozinhas, casais e famílias a consumir ou a querer consumir, como aquela, daquele homem que chegava empurrando o carrinho de compras, em que ainda não havia compras, mas sim duas crianças felizes pelo passeio no shopping. O terceiro dos filhos dessa feliz família, estava confortavelmente acomodado no colo da mãe, que caminhava logo atrás do companheiro.

O homem tomou a direção do setor de crediário para dar uma verificada na condição de compra do cartão de crédito dele. Entregou o cartão ao funcionário do setor e ficou aguardando o retorno, enquanto sua companheira e as crianças aguardavam que ele voltasse.

- Sr Antero Bertoni…

Ele saiu da abstração e voltou-se para o funcionário.

- Sim!

- Sr. Antero , seu cartão encontra-se bloqueado, pois o limite já foi usado, e existe registro de fatura não paga.

- Mas como?

- Conforme o senhor pode ver…

O funcionário estendeu-lhe uma folha com dados do computador que estavam os registros que impediam o uso do cartão.

Antero pegou aquela folha, levantou-se e caminhou em direção à companheira e filhos.

Lara vendo a cara amarrada do companheiro perguntou:

- Tudo bem, Antero?

A resposta veio tão rápida quanto ríspida…

- Tudo bem nada! Bloquearam a merda do cartão.

- Bloquearam?

- É droga! Bloquearam!

- Então não vamos poder comprar nada?

- Você tem dinheiro?

- Não!

- Então fedeu! O jeito é voltar para casa.

- Liga pro seu pai!

- Liga pro seu!

Nesse momento, Bia, a mais velha das crianças, percebeu que estavam voltando para o estacionamento, quando no entendimento dela deveriam estar entrando na área de compras do mercado.

Levada pelas mãos de Lara de uma forma próxima ao arrasto, questionou:

- Por que estamos indo embora?

Lara é que dessa vez foi tão rápida na resposta quanto ríspida.

- Não alopra, Bia! Segura sua onda e vamos embora.

Antero pegou a pequena Bia e a colocou de volta no carrinho de compra, e tomou definitivamente a direção do estacionamento de volta para o carro.

Bia ate achou divertido descer a escada rolante dentro do carrinho de compra, como se nele estivesse surfando.

No caminho Lara ligou para o pai dela avisando que passaria na casa dele.

Receber os netos era sempre uma razão de alegria para o senhor Navarro, ele adorava Bia, que embora não fosse neta dele de sangue, pois era filha da união anterior de Antero, gostava muito da menina e era correspondido no sentimento.

Bia era um pequeno ser, de coração grande, e gostar das pessoas que a cercavam era uma característica pessoal e marcante.

- Oi, vô!

- Oi, Bia! Oi, crianças! Como vai Antero? Tudo bem filha?

Antero limitou-se a olhar por cima dos ombros do pai da companheira e voltou-se para o carro com o objetivo de fechar a porta do veículo.

Lara já estava dentro da casa, acomodada no sofá da sala.

- Pai , precisamos de uma grana emprestada para poder fazer as compras do mês.

Seu Navarro já imaginava que a presença da filha ali tinha por finalidade aquele pedido, que não era o primeiro e nem seria o ultimo, pois apesar de toda a pompa que carregava em si, seu genro não tinha responsabilidade com nada e estava sempre na dependência do socorro financeiro de alguém, ora do próprio pai, ora dele. Esse procedimento já o estava aborrecendo, mas acabava disponibilizando valores para a filha, para não cair sobre si alguma responsabilidade sobre o futuro daquele relacionamento dela com o despreocupado Antero.

Se eles estavam ali a lhe pedir dinheiro era pelo fato de que na outra fonte não havia água a jorrar.

Seu Antero foi ate o quarto e, de lá, retornou com R$ 500, e os entregou a sua filha.

- É o que eu tenho no momento, filha!

Enquanto Lara e Antero se ocupavam em contar o dinheiro, seu Navarro foi ate ao quarto, onde as crianças brincavam.

Pegou o mais novo no colo, com carinho e delicadeza, enquanto o seu segundo neto agarrado as suas pernas, parecia ter a pretensão de iniciar uma escalada ate os braços.

Embora envolto pelos netos, os olhos de seu Navarro se encontraram com os olhos de Bia. Ele viu que eles estavam tristes. Percebeu que neles havia uma lágrima contida. Desvencilhou-se dos pequenos e pegou a neta de coração nos braços.

- O que esta acontecendo, minha querida?

Bia ficou calada e apenas colocou os braços ao redor do pescoço do avô, e ali descansou a cabeça.

- Fala comigo, Bia! O que esta afligindo o seu coraçãozinho?

No limite do choro, Bia falou…

- Meu pai e a tia Lara estão brigando muito, e eu acho que é por minha culpa.

- Não é culpa sua não, minha princesa. Os adultos é que são complicados assim mesmo.

A essa altura, Bia já chorava sentida e sua lagrimas molhavam o cetim da camisa do avô.

Seu Navarro todas as vezes que a neta se encontrava em situação em que a tristeza tirava a alegria do rosto dela, procurava de uma forma que entendia ser adequada trazer a alegria de volta ao rosto de Bia.

-Olha filha, toma aqui…

Por não haver na roupa que a pequena Bia vestia nenhum bolso, seu Navarro tirou do bolso dele uma nota de R$ 5 e, com ela, fez uma espécie de canudo e o dobrou. Em seguida, o prendeu ao corpo de Bia com o elástico da calcinha.

Bia saiu toda feliz em direção ao carro, pois o pai já a chamava para ir embora.

No carro, acomodou-se entre a cadeirinha onde já estava o irmão de colo e o outro irmão.

Iniciava-se naquele momento uma jornada pela insanidade humana, que mudaria a vida de todos que estavam dentro daquele carro, no presente e no futuro.

Para mim, em algum momento daquele trajeto entre a fonte, representada pela casa de seu Navarro, e o fosso, representado pelo destino dos Bertonis, aconteceu o seguinte:

- Antero, vamos logo pra casa que eu estou com muita dor de cabeça…

- Mas está cedo ainda, Lara. Vamos voltar ao shopping.

- Eu quero ir para casa, não quero ir para shopping nenhum

- E as compras ?

- Que se danem as compras…Eu quero ir para casa.

- Pô, que frescura sua!

- Frescura é o cassete. Fresco é você, fresco, duro e incapaz.

Antero já estava pronto para responder na mesma medida, quando a voz da filha soou alto no interior do carro.

- Não xinga o meu pai!

Bia havia se levantado e se postado no vão de separação dos bancos dianteiros do carro. Metade do corpo dela estava apoiada na lateral do banco, onde Lara se encontrava, e a parte superior do corpo projetava-se sobre a madrasta, na intenção de impedir que ela continuasse a agredir verbalmente o pai.

A reação de ambos, tanto de Antero quanto de Lara, foi instintiva e decisiva para o desenrolar dos acontecimentos.

Lara, em estado pleno de ira, levantou a mão em direção ao rosto de Bia.

Antero, ao mesmo tempo em que projetava seu braço no sentido do braço de Lara, para evitar que a mão espalmada da companheira atingisse o rosto da filha, meteu o pé no freio. O precipitado gesto fez com que, na parada brusca do carro, o tronco de Bia fosse projetado sobre o encosto do banco, e o lado esquerdo da cabeça dela batesse violentamente contra a parte mais dura do console. Naquele instante, as luzes do painel e do sistema de som do carro perderam o brilho para Bia.

Ali agora, não havia mais lugar para a racionalidade, a loucura dominara os Bertonis e tudo se tornou uma questão de salvar, não a Bia, mas a si mesmos.

O que aconteceu depois?

Bom, depois…Isso é uma outra triste historia!

“Difícil não é fazer o que é certo, é descobrir o que é certo fazer.”

Robert Henry Srour

FIM