Espiral do Silêncio
Falar sobre as coisas pequenas. É, sim! Falar sobre as coisas insignificantes, que passam despercebidas, que voam no movimento do olhar e passam longe do radar perceptível à rasa consciência. Falar sobre o estado de transe. Aquela fase do momento em que entra-se no estado pseudo-beta, em que tudo ao redor continua seu rumo natural mas simultaneamente parece transformar-se num enorme ambiente à parte, que ainda é passível de ser conscientemente analisado pela angustiante transparência proposital da sua bolha observatória. Falar do sentido mais amplo da observação, em suas inúmeras e possíveis formas. Aquele observar feito com os sentidos: com os olhos, o cheiro, a audição, o tato, a intuição. Falar sobre aquele momento em que, mesmo sem perceber, pode-se ouvir o som sem realmente ouví-lo. Sentir o ambiente sem realmente vê-lo. Captar as imagens sem realmente encará-las. Entrar em outra dimensão sem realmente habitá-la. Falar sobre o instante. Sobre o pormenor. Sobre o Post-Scriptum. Sobre a vírgula, sobre o espaço. Nada de falar sobre os grandes temas sociais, sobre as grandes construções imponentes, sobre os acontecimentos estrondosos. Falemos sobre o vão das coisas. Sobre o que não pode ser dito. Sobre as falésias profundas e irregulares que habitam o cotidiano. Elas não podem passar despercebidas. Os movimentos não podem passar. Cantar o banho de areia do passarinho. Fotografar a fumaça de cigarro saindo cheia de intimidade. Pintar o dia-a-dia, os cruzamentos diversos. De olhares, de mãos, de ruas, de vidas. Esculpir o fato que se perdeu. Escrever o movimento que ninguém viu. Falar o silêncio. Falar sobre aquilo que só dentro de nós parece ser um assunto plausível de ser devidamente discutido. Ou pelo menos indigno de ser descartado.