Espiral do Silêncio

Falar sobre as coisas pequenas. É, sim! Falar sobre as coisas insignificantes, que passam despercebidas, que voam no movimento do olhar e passam longe do radar perceptível à rasa consciência. Falar sobre o estado de transe. Aquela fase do momento em que entra-se no estado pseudo-beta, em que tudo ao redor continua seu rumo natural mas simultaneamente parece transformar-se num enorme ambiente à parte, que ainda é passível de ser conscientemente analisado pela angustiante transparência proposital da sua bolha observatória. Falar do sentido mais amplo da observação, em suas inúmeras e possíveis formas. Aquele observar feito com os sentidos: com os olhos, o cheiro, a audição, o tato, a intuição. Falar sobre aquele momento em que, mesmo sem perceber, pode-se ouvir o som sem realmente ouví-lo. Sentir o ambiente sem realmente vê-lo. Captar as imagens sem realmente encará-las. Entrar em outra dimensão sem realmente habitá-la. Falar sobre o instante. Sobre o pormenor. Sobre o Post-Scriptum. Sobre a vírgula, sobre o espaço. Nada de falar sobre os grandes temas sociais, sobre as grandes construções imponentes, sobre os acontecimentos estrondosos. Falemos sobre o vão das coisas. Sobre o que não pode ser dito. Sobre as falésias profundas e irregulares que habitam o cotidiano. Elas não podem passar despercebidas. Os movimentos não podem passar. Cantar o banho de areia do passarinho. Fotografar a fumaça de cigarro saindo cheia de intimidade. Pintar o dia-a-dia, os cruzamentos diversos. De olhares, de mãos, de ruas, de vidas. Esculpir o fato que se perdeu. Escrever o movimento que ninguém viu. Falar o silêncio. Falar sobre aquilo que só dentro de nós parece ser um assunto plausível de ser devidamente discutido. Ou pelo menos indigno de ser descartado.

Beatriz Moraes
Enviado por Beatriz Moraes em 29/07/2008
Reeditado em 19/05/2014
Código do texto: T1102583
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