Outono

Recordações, tal como numa máquina do tempo vogamos para tempos distantes. Recriamos na imaginação intensos momentos. Não é uma Kodac, e sim um diafragma intemporal que dispara imagens repetidamente da infância, da adolescência, até aos dias de hoje, como num filme sem fim.

Ao deliciar-me com castanhas assadas ao almoço, pensei nesses momentos que vivi. E as recordações associadas logo se fizeram sentir. Viajei até à minha infância em Alvalade, na cidade de Lisboa. Ao ir para a escola, a Preparatória Eugénio de Santos, descia a Rua Ricardo Jorge, onde morava, passava junto ao mercado sentia aquele cheiro característico de Outono: as castanhas assadas temperadas, além do sal, por uma chuva miudinha, intensa e saborosa.

O cair da folha é das estações mais bonitas, pois esconde em si a perda, abrindo as portas à renovação. As árvores despem-se num prazer eterno, num ciclo contínuo de vida. Tombam por breves instantes, para na Primavera nos voltarem a surpreender de cor, transbordando alegria e vida.

Os jardins vestem-se de folhas acastanhadas, mortas. Um ciclo que se repete de ano para ano, mostrando-nos a essência de novos caminhos, de novas fronteiras e de novas apostas.

Quando adolescente, mas já a morar na cidade do Porto, voltei a sentir esse sentimento ímpar. Só que desta feita por entre edifícios antigos, cinzentos e transbordando escuridão em dias enevoados, como vestidos para receber o Outono e o Inverno. Descia do autocarro, junto ao Imperial, hoje entregue a uma grande marca de franchising de hambúrgueres, povoado de muitas caras, umas habituadas a sobreviver na marginalidade, escondidos da lei, outras em correria constante para o trabalho, nos seus afazeres. E em pontos estratégicos via o assador de castanhas. Sentia logo o seu inigualável perfume, apelando aos meus sentidos. Inebriando-me, enlouquecendo-me.

Caminhava então para o liceu, atravessava a Rua Sampaio Bruno, mais um assador junto à Brasileira, outro café histórico votado ao abandono, percorrendo Sá de Bandeira. Na esquina com Passos Manuel, novo homem lançava aquele perfume inconfundível. Subia a rua do Coliseu e entrava em Santa Catarina.

Oh, que saudades... Junto ao Majestic, libertando uma névoa de puro prazer, o assador convidava-nos a degustar o fruto. Olhando a rua, até onde os olhos alcançam mais típicos assadores. E por toda a cidade sabíamos que tinha chegado o Outono: castanhas e uma chuva miudinha incansável.

Kadú
Enviado por Kadú em 10/08/2008
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