Advertências

As reclamações da mãe, as advertências do pai e os gritos da avó não a demoveram do desejo da viagem a João Pessoa.

Arrumou emprego numa lanchonete. Três meses de intensa labuta: suficientes para adquirir as passagens aéreas.

Enquanto os termômetros e as previsões garantiam geadas intensas em metade do mês, os agentes de viagem asseguravam que as temperaturas de João Pessoa dificilmente ficariam abaixo dos trinta e cinco graus. Dia e noite, noite e dia. Calor intenso. Garotas de biquíni, deitadas nas areias ou em cadeiras, bronzeavam-se alegremente. Garotos ensaiavam espetáculos de surfe em ondas inexistentes ou calmas demais.

À esquina do quarteirão de casa, duas malas em punho e uma bolsa de viagem nas costas, Raquel procurava um táxi. Do portão, descalça sobre a calçada gelada, a avó gritava exasperadamente. Como gastar dinheiro economizado tão sacrificadamente para pular carnaval? Carnaval em julho?

O pai falava das notícias do jornal, da corrupção da polícia, dos hospitais lotados e sem condições de atender aos moradores da cidade. Como atendê-la se precisasse? Se passasse mal? Se tivesse febre, fosse picada pelo mosquito da dengue ou por uma bala perdida? Se fosse atravessada por uma peixeira?

- Pense na sua mãe, minha filha.

Mais desesperada, a mãe apelava para a chantagem emocional. Que pensasse na violência, nos assaltos, na terra desconhecida, nas pessoas que nunca vira, nas comidas e nos costumes diferentes...

- Eu me mato. Eu juro! Eu me mato se viajares.

Um amigo de Raquel que passava de carro pelo local diminuiu a velocidade assim que viu de longe a presepada na rua. Ela o parou, jogou as malas dentro, mandou tocar para o aeroporto. O pai, a mãe a avó gritavam, berravam, acenavam e se perdiam no fundo do retrovisor.

O avião proveniente de Curitiba, com escala em Assis, pousou no Aeroporto Castro Pinto em menos de quatro horas de vôo. Raquel inicialmente decepcionou-se com o pequeno tamanho do aeroporto, com a mata e algumas casas simples cercando o local, mas rapidamente extasiou-se ao se aproximar das praias pessoenses, privilegiadas por um trajeto que as colocavam como pano de fundo de cartões postais.

Como se brincasse na história da felicidade e não pudesse desperdiçar tempo, arrancou apenas o biquíni da mala, vestiu-o e antes do pôr-do-sol entrou nas águas turvas e calmas. Seu corpo ruivo misturava-se aos últimos raios, criando um cenário de beleza e de desejos.

Naquela semana, conforme lhe informara o agente de viagens, três dos mais tradicionais e principais blocos de carnavais da cidade desfilariam pelas avenidas. Raquel ensaiou passos engraçados de dança olhando-se no espelho do quarto. Andando pela orla, descobriu que precisaria de um abadá, uma espécie de uniforme do carnaval fora de época, que permitiria sua entrada no cordão de isolamento.

O espaço torna-se pequeno e a memória pula os acontecimentos desses quatro dias e quatro noites de euforia. Assim como as brincadeiras de criança se esgotam quando o melhor da festa começa, a semana de Raquel em João Pessoa passou como passam os momentos pueris.

Quando retornou a Assis no sábado, Raquel vislumbrou uma faixa estendida no saguão, segurada pelos pais, que tão logo a viram entrar no pequeno prédio, soltaram a faixa e correram à filha. Sentada numa das cadeiras, a avó segurava sorrateiramente um cachecol que fizera durante a semana de ausência da neta.

Contados, ali mesmo no aeroporto, os detalhes da festa, a avó disparou:

- Ano que vem, não perco carnaval fora de época em João Pessoa de jeito nenhum. Silenciosa, calculava com os olhos quanto precisaria guardar de sua aposentadoria para pagar hotel, avião, comida, artesanato, passeios, água de coco. Como sonhava em tomar água de coco, pés socados na areia da praia.

No ano seguinte Raquel, os pais e a avó desembarcaram em João Pessoa. Desconheço como a estada da família se deu, mas certo é que, depois de freqüentar um carnaval fora de época, a avó não quis mais saber de ficar presa em casa: associou-se à Terceira Idade e não perde viagens, festas, bailes ou comemorações.

Os pais de Raquel aparentemente não sofreram mudanças. Aparentemente. Na prática, até agora os vizinhos nem descobriram nem conseguem imaginar acertadamente a rotina barulhenta (de gritos, ranger de dentes e de móveis) que se instala na casa, sempre que a avó sai para seus compromissos e Raquel ruma para a universidade.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 14 de agosto de 2008.