Alcatrás Café

Quando escrevi este texto, foi num ímpeto, numa pura loucura. Num café da aldeia, onde resido, recriei múltiplas personagens. Peguei em inúmeros guardanapos, pedi emprestada a esferográfica ao empregado e dediquei-me a escrever. Agora, olhem com atenção o café onde param e tentem apenas procurar as caricaturas. São realmente muitas. Os cromos sucedem-se numa caderneta infindável do quotidiano. Por vezes, apenas mudamos de local e a figuras mantêm-se. Naturalmente, seria incorrecto da minha parte, com os visados, se também não fosse alvo deste caricaturar…

O enredo, a intriga, desta história roda em volta de um pequeno café, tal como o espaço, uma aldeia à sua medida, um micro-espaço. Deixem-me descrevê-lo. Uma televisão que já viu melhores dias, com uma imagem distorcida e cheia de imperfeições, mostra o que se passa no mundo aos seus clientes. A ligação por cabo apenas existe na imaginação dos seus proprietários. Em noites de futebolada, os clientes gritam alegres com o relato da rádio, um som estridente vindo de uma coluna defeituosa agarrada a um radiozeco de cinco réis. Gritam, esperneiam, ante a vitória do seu clube. Piú-Piú,, barman de eleição, olha horrorizado ante tal algazarra, franzindo os sobrolhos, recheados de fartas sobrancelhas.

É decididamente um local movimentadíssimo, situado numa rua que sobe e desce. O empregado fala e persegue as moscas de jornal em punho, clientes indesejados em dias e noites de Verão. Tudo o que o cliente desejar o café não tem, mostrando a sua agressividade no negócio da restauração e similares.

Inigualáveis personagens frequentam este café. Um deles, Akuro, o sacerdote, que unge os mais desfavorecidos com a sua palavra fácil, levando-os ao caminho incorrecto do senhor. Toca-os com a sua aura, uma divindade que prega a sete, oito ventos. Rega-os com o néctar dos campos, alegando ser uma providência do omnipotente. Sabe como conduzir este rebanho de ovelhas tresmalhadas que frequenta Alcatrás Café. Seu hábito, não é o do monge. Convive de perto com os demoníacos clientes, que Piú-Piú atende diariamente.

O diácono, com doutrina própria e estaminé montado, esconde na manga um passado negro e devotado ao crime. Expurga os antecedentes, ajudando os mais desfavorecidos e abertos ao ilícito. Akuro esconde, em seu olhar doce, um bucaneiro dos tempos modernos. Uma verdadeira raposa, que espreita atentamente os clientes do estabelecimento.

Outra das personagens é El Ganadero, negociante afamado de gado, também frequentador do café. Quer vender o carro, um espada de último grito. Sempre de lamento na ponta da língua, queixa-se da sua pobreza, escondendo em seus bolsos notas de alto calibre.

Entretanto surge na soleira porta, Fininho Fácias, jogador inveterado, sacode a má sorte em terrenos conhecidos. Multifacetado, aposta sabedoria. Visita diariamente o café à procura de vítimas femininas, que vislumbra pelo vidro, sentado num banquinho estofado de cor bordeaux. Assedia diariamente o público feminino que passa na rua que sobe e desce, levando numa conversa fácil qualquer moça desprevenida, se lhe dessem confiança. Ri-se intensamente da fragilidade alheia. Troca constantemente mensagens pelo seu telemóvel (celular), que vibra ininterruptamente. Um verdadeiro Casanova, mas sem as amantes desejadas e que tanto procura ansiosamente.

Nunca podemos esquecer Johnny Bigodes e não se deixem enganar pelo seu tamanho, que outrora levou ao erro os oponentes. Também conhecido por Hitachi Man, é um disco por formatar, tal é a sua tenacidade. Caminha, como o filho do dragão, pelas ruas da cidade, fazendo quilómetros como quem vai à esquina e não se passou nada. Meio-quilo de gente, baixa estatura, bigodinho espreitando entre os lábios e olhar furtivo. Nos seus tempos de juventude foi um verdadeiro galo de luta e um bravo. Hoje, já corroído pela idade dedica-se a longas caminhadas, acabando por parar em Alcatrás Café, ponto de reunião. Ali, depois de cravar um cigarrinho e tomar um cafezal, narra as suas facetas da juventude, iludindo os mais jovens à procura de aventura.

De repente no exterior ouve-se barulho, acaba de aterrar Nasa Man, ao volante do seu space shuttle, um Fiat 600, de cabeça de fora. Sua fama estende-se a galáxias distantes, tendo já firmado contactos de grau desconhecido com extra-terrestres. Já enfrentou naves espaciais, de onde saiam exércitos de alienígenas. Calcorreou, segundo ele, depois de contar pelos dedos da mão, mais de 20 países, sem deixar de realçar que combateu em Marte, Plutão e viajou até aos anéis de Saturno. Um homem de mil e uma facetas. Usa um phaser, onde risca os extra-terrestres que abate ao serviço das nações terrestres. Temerário, de charuto na boca, que fuma sem parar, mordendo-o violentamente, não conhece o perigo. Sempre na linha da frente procura de cabeça erguida o inimigo, que se esconde onde menos se espera. Um combatente da liberdade.

Espreitando por entre cortinas bordadas e envelhecidas pelo tempo, surgem os olhos desconfiados de Evil Resident mais o seu gato, possuidor da terceira visão. Domina o sobrenatural, espalhando as suas visões pelo estendal mais próximo. Por seu turno, no quintal, situado nas traseiras do café Demolition Man com seu pé-de-cabra e machado esmigalha até o pedaço maior de madeira, transformando-o numa pequenina acendalha.

De volta à rua, surge no horizonte Capitão Iglo. Regressa a casa, depois de um dia a fazer de piratinha. Por entre os óculinhos, seus pequeninos olhos, teme os clientes de Alcatrás Café que o vislumbram pelo grande vidro da montra. Riem desalmadamente ante a ameaça do seu tamanho, 1, 60 de altura. E ele pensa: “Deviam estar todos entre grades! Criminosos”.

Olhando mais acima, ou mais abaixo, como queiram, passeia Salamandra, destruidora de corações. Seu maior divertimento é aterrorizar os corações de todos que sentem carências, abanando seu traseiro, como se um pára-brisas se tratasse.

Existem ainda umas personagens secundárias, que iremos apelidar de agentes da KGB, CIA, PIDE’s ou o raio que os parta. São os mirones atentos à vida alheia. Vasculham até o lixo dos seus semelhantes, à procura de provas incriminadoras. Viperinos falam sobre os demais sem se sentirem rogados.

Esquecemos que devemos esta história ao mui prestigiado proprietário de Alcatrás Café, MaMa Vermelhinho, que vive agarrado à sua caixa registadora, amor da sua vida. Toca suas teclas com uma delicadeza, como se dedilhasse uma sonata no piano. Seu irmão Ho-Chi Mina, técnico de artes triviais, defende seu património, tal qual um espadachim sua dama.

Bom este cenário não teria graça sem as duas Betty Boops, que de passeio em passeio se deliciam, provocando o sexo masculino, pelas ruas cheirando e devorando as montras da aldeia. Sorriem ante a possibilidade de gastarem dinheiro em roupas.

Outro dos afamados frequentadores deste café o Endovenoso. Perigoso cadastrado, de aspecto alienado, contacta nesta realidade com Piú-Piú. Promete, a troco de dinheiro, pura formação ao empregado nas artes do crime. Comprido, dotado de uma musculação indescritível é ameaçador. Seu olhar vomita fogo e é gélido ante as situações de puro perigo.

Um louco à procura de sarilhos. Piú-piú vive aterrorizado com a sua visita, pois teme ser vítima de tão perigoso inimigo social. Trata-o nas palminhas. Devorador, o beligerante criminoso, tal qual o monstro das bolachas, come desalmadamente e sem parar bolos embalados. A seco, sem molhar a garganta. É preciso coragem!

Passeia-se diariamente na rua que sobe e desce imune à autoridade, rindo-se dos braços curtos da lei. Engana os mais incautos, desatentos à sua perigosidade. Endovenoso é um cérebro afamado, refugiado nesta terra distante e desconhecida dos grupos anti-terroristas mundiais, gizando mil um planos para destruir o globo com seus atentados mortíferos.

Alcatraz Café esconde mil e uma facetas do terror mundial. Ponto de encontro de exilados, banidos do mundo legal, vivem tal qual fora-da-lei. Criam o caos, os outros que procurem a ordem.

Kadú
Enviado por Kadú em 26/08/2008
Código do texto: T1146543
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