SEPTUAGENÁRIA DIGNIDADE

Ela começou a trabalhar com setenta e dois anos de idade. Não, desculpem, vou refazer a sentença: Ela conseguiu seu primeiro emprego após completar setenta e dois anos.

Agora sim, acho que ficou melhor, pois é injusto dizer que uma senhora de setenta e dois anos, dona de casa, mãe e avó, começa a trabalhar nessa idade. Na verdade, já trabalha há mais de sessenta, pois quem foi criada, treinada e educada para os serviços domésticos começa cedo sua labuta, mesmo ainda criança, já assume tarefas de gente grande.

Mas o seu primeiro emprego foi septuagenário. Época em que a maioria das pessoas não quer ou não agüenta mais nem mesmo falar em trabalho e emprego quanto mais nas duas coisas juntas. É, por que tem muita gente que trabalha e não tem emprego (como minha sogra), outros têm emprego, mas não trabalham (como um amigo meu que mora em Brasília).

A anciã trabalhou a vida toda, sua lida era lavar, varrer, passar, cozinhar, cuidar de marido safado, menino danado, neto mimado, agüentar cunhado folgado, sogro enjoado, cachorro encarrapatado, vizinho enfezado, agiota irritado, economizar feirinha minguada, roupinha surrada, chinela furada, dia, noite e madrugada, sofrendo calada infinita jornada. Ninguém sabia direito se era assim por resignação ou por costume. Talvez o costume matou a resignação ou a resignação virou costume, sei lá. Mas, olha, isso é que é trabalho! Todo dia, toda hora, sem parar, que nem cantiga de grilo. Sem carteira assinada, férias, décimo terceiro, décimo segundo... sem salário algum.

O tempo passou, o marido foi-se embora, felizmente. Os filhos casaram, opcionalmente. Os netos cresceram, naturalmente. Ela envelheceu, inexoravelmente, mas estava livre daquele estilo sufocante de vida, não tinha mais que lavar pratos, fazer comida nem cuidar de ninguém e o que é melhor, sem precisar ser cuidada excessivamente por ninguém.

Na sua fase mais sex (sexagenária) dedicou-se a fazer crochê exaustiva e esmeradamente. O que lhe valeu para que na sua fase inicial septua (septuagenária) fosse convidada para ser professora dessa arte em uma ONG mantida com recursos do governo municipal. Um emprego, definitivamente um emprego. Um sonho que se tornava realidade. Você tem idéia do que significava isso para a velhinha? Ter carteira de trabalho, exibi-la assinada como se fora um troféu olímpico. Sair de casa para dar um expediente sorrindo como se fosse passear. Assinar o ponto todo dia, fazendo pose que nem governador assinando contrato. Fazer parte de uma instituição como se ela fizesse parte de sí. Sentir-se importante ao participar de uma reunião de trabalho com outros profissionais e se conter de emoção ao dar palpites. Dizer que está com preguiça na segunda-feira e morta de cansada na sexta-feira, mas de mentirinha, só para fazer a linguagem do trabalhador. Ora, se ela pudesse trabalharia até aos sábados e domingos.

Auto estima equilibrada, dignidade, felicidade, vida, sonhos, sorrisos, sociabilidade, realização, tudo isso e mais outras coisas boas o trabalho trouxe a venerável senhora, lhe dissimulando a senectude. Parecia outra pessoa. Na verdade era mesmo, vivia agora de cabeça erguida, cheia de vitalidade. Gonzaguinha estava certo: "sem o trabalho o homem não tem honra - e sem a sua honra, se morre, se mata. Não dá pra ser feliz,não dá pra ser feliz...". Agora dava pra ela ser feliz, mesmo beirando o remate da sua historia.

Interessante, ontem ela me procurou e disse: Quando eu estiver um pouco desocupada (olha que velha marrenta) eu queria lhe fazer umas perguntinhas sobre esse negócio de previdência privada.

(Texto premiado no concurso de crônicas da CAPEF em 2007)