CABRAS!

As mangueiras com as suas copas verdejantes assombreavam o quintal. Pelos cálculos da família, uma delas, já havia passado à casa dos cinqüentinha. Seus frutos grandes, amarelados, expurgando o melado em adocicado aroma transformam o ambiente num festival ecológico. Abelhas zunindo, prá lá e prá cá, a passarada, então, esvoaçava em seu entorno anunciando com o canto um colossal banquete.

Sempre com toda a criançada_ parentes e agregados_ ouvíamos os contos de fada, muitos deles, contados e dramatizados pelo meu pai. Um desses contos abandonava um medo cruel no espírito, ainda frágil e assustado de todos nós.

“Às margens de uma floresta existia, há muito tempo, uma cabana pobre feita de troncos de árvores, onde moravam um lenhador, sua segunda esposa e seus dois filhinhos, nascidos do primeiro casamento. O garoto chamava-se João e a menina, Maria.

Na casa do lenhador, a vida sempre fora difícil, mas, naquela época, as coisas pioraram: não havia pão para todos.

— Mulher, o que será de nós? Acabaremos morrendo de fome. E as crianças serão as primeiras.

— Há uma solução... – disse a madrasta, que era muito malvada – amanhã daremos a João e Maria um pedaço de pão, depois os levaremos à mata e lá os abandonaremos. O lenhador não queria nem ouvir um plano tão cruel, mas a mulher, esperta e insistente, conseguiu convencê-lo.

No aposento ao lado, as duas crianças tinham escutado tudo, e Maria desatou a chorar.

— E agora, João? Sozinhos na mata vamos nos perder e morrer.

— Não chore — tranqüilizou o irmão. — Tenho uma idéia.

Esperou que os pais estivessem dormindo, saiu da cabana, catou um punhado de pedrinhas brancas que brilhavam ao clarão da Lua e as escondeu no bolso. Depois voltou para a cama. No dia seguinte, ao amanhecer, a madrasta acordou as crianças.

— Vamos cortar lenha na mata. Este pão é para vocês “...

Fome?

É o que menos sentia. Descendentes de família de portugueses e italianos desde pequena aprendemos junto aos adultos a importância de cultivar uma horta, um pomar, e de criar a bicharada: galinhas, cabras, e outros animais. Domésticos? Alguns, nem tão domésticos assim!

Sempre aos domingos o almoço rendia uma mesa farta. Os alimentos colhidos por nossos pais e avós propiciavam momentos de puro êxtase, concedidos pelos dotes gastronômicos das mamas italianas e portuguesas. Os rostos avermelhados e as gargalhadas de todos os bacantes simbolizavam a visita ruidosa de Dionísio, sempre enroscado nos copos de vinho e de suco de uva.

“Partiram os quatro. O lenhador e a mulher na frente, as crianças atrás. A cada dez passos, João deixava cair no chão uma pedrinha branca, sem que ninguém percebesse. Quando chegaram bem no meio da mata, a madrasta disse:

-— João e Maria, descansem enquanto nós vamos rachar lenha para a lareira. Mais tarde passaremos para pegar vocês. Os dois irmãos, após longa espera, comeram o pão e, cansados e fracos, adormeceram. Acordaram à noite, e nem sinal dos pais.

— Estamos perdidos! Nunca mais encontraremos o caminho de casa! — soluçou Maria.

— Quando a Lua aparecer no céu acharemos o caminho de casa— consolou-a o irmão.

Quando a Lua apareceu, as pedrinhas que João tinha deixado cair pelo atalho começaram a brilhar, e, seguindo-as, os irmãos conseguiram voltar à cabana. Ao vê-los, os pais ficaram espantados. O lenhador, em seu íntimo, estava contente, mas a mulher não. Assim que foram deitar, disse que precisavam tentar novamente, com o mesmo plano. João, que tudo escutara, quis sair à procura de outras pedrinhas, mas não pôde, pois a madrasta trancara a porta. Maria estava desesperada...”

_Como? Madrasta? Mas, o que é isso, papai?

_Madrasta, minha filha Luiza, é a palavra que se usa quando a mãe de uma família morre e o pai resolve casar de novo, sendo assim essa mulher fica no lugar da mãe das crianças. É a madrasta!

_Nossa! Que madrasta malvada essa do João e Maria! Ainda bem que a minha mãe está mais viva do que nunca, assim o senhor não precisa casar de novo!

Bem...! Agora, já adulta estudando a verdadeira "história" dos contos de fada, me envolvo com a fome, e, a pobreza rondando a Europa Medieval, e literalmente, os miseráveis desse tempo, esticavam as canelas pelas ruelas e caminhos. O fedor do inferno acompanhava os vivos ao pisar nos corpos putrefatos. Sem dúvida, para a população mendicante da época, Ulisses viria resgatar as almas para a grande viagem.

A fome era tanta que os pais abandonavam os filhos a própria sorte, afinal, na visão da época, eles não passavam de adultos em miniatura. No paradoxo medieval, o corpo corruptível daria lugar à liberdade da alma e ao Paraíso. Dessa maneira, todos esses acontecimentos foram assim, passados para os contos.

Cabras!

É que tio Aristides tinha um plantel de cabras, e, também um amigo de nome Américo, com certeza, no nosso olhar infantil, ele havia sido transformado por Medusa em estátua.

Conta uma lenda, que em um dia inominável, em um dos templos de Atena, ela mesma, a mal amada, deusa grega da sabedoria, ficou sabendo por um deus, o fofoqueiro de plantão, que, a tal de Medusa teria feito amor com Poseidon, ele mesmo, o do garfão, considerado o deus do mar, o que levou a deusa, furiosa, a transformar Medusa e suas irmãs em seres repugnantes, com pele escamosa e serpentes enormes na cabeça. Além da terrível aparência, Atena a tornou mortal, e lhe deu um poder terrível... O seu olhar transformava quem a olhasse em estátua de pedra.

Mas, voltando para as cabras!

Confidenciei no ouvido do primo Hamilton uma sugestão. Ele pensou, pensou..., chamou os primos e irmãos, e, juntos rechearam as mãos de azeitonas de cabras, isto mesmo, de bosta, e, como metralhadoras humanas atiraram contra a tal estátua, que finalmente, se mexeu e remexeu, e saiu andando, debaixo de uma saraivada de bosta, praguejando do quintal!