O SER MECÂNICO

Desperta o relógio: acordo: estou atrasada. Corro. Tomo banho. Coloco roupa. Corro de novo. Tomo café. O café com as mesmas coisas. Calço os sapatos. Vou pro carro. Ou ônibus. Mas corro. Gente, cachorro, impaciência logo cedo. Chego no trabalho. Abro a porta: papéis. Números. Ânsia de vômito. Paciência. Sento. Um, dois, três, respiro. Quem mexeu na minha mesa? É sempre ninguém.

Telefono toca. Pepino. Mais um pra lista. Começa o trabalho. Alguém interrompe. Alguém questiona. Alguém não tem nada pra fazer. Alguém me irrita. Volto pra tarefa de antes. Onde eu estava mesmo? Começo tudo de novo. Perco mais tempo.

Um senhor chega. Só pra pedir informação. Interrompe. Tadinho. Ele não tem culpa. Um, dois, três, respira mais. Tadinho o caramba. Me entrega um santinho. Olho pro cara da foto. Ladrão. Vai embora; graças a Deus. Continuo o que estava fazendo. Celular toca: -por favor, aguarde um momento, uma musiquinha chata: - bom dia, sou da operadora tal, tal, tal, você já conhece nossos planos e facilidades? Vinte e nove, trinta, trinta e um. Muito, muito mais paciência. Desculpe-me, moça, não estou interessada em mudar de operadora. Ela fala muito, muito mesmo. Parece até gravação. Não, moça, realmente não estou interessada. Trinta e dois, e três, quatro, trinta e cinco. Insitência. Ufa! A operadora tal, tal, tal agradece sua atenção e tenha um bom dia. De que jeito? Guardo o celular.

Volto pra tarefa. Começo do começo. Outra vez. É meio-dia. Saio pro almoço. No restaurante, fila. Mortos da fome, alguns parecem. Prato, garfo, faca. Sirvo-me.Dirijo-me à mesa. Sento, faço o mesmo de sempre. Peço a bebida: suco de maracujá, por favor! Meia hora depois ele chega. Quase no final. O garçon pede desculpas. Tomo o suco. Termino de almoçar. Volto pro carro. Volto pra empresa. Voltando pros papéis. Reinicio. Eu preciso de paciência. Recomeço. Consigo terminar, parece mentira. Nem quero falar duas vezes.

Três e meia, quase quatro da tarde. O telefone já tocou intermináveis vezes. Gente já chamou mais ainda. Quatro e meia, cinco horas. Meu Deus, mas como o tempo passou rápido, hoje- eu sempre falo. Penso um pouco, guardo os papéis. Cinco e vinte e cinco. Está dando a hora. Não fiz nem a metade do que queria. Frustração. Paciência?

Começo a organizar o que não consegui para amanhã. Vou guardando aos poucos. Fecha janelas do computador. Guarda mouse, bateria, fecha a mochila. Levanto da cadeira. Dou uma última olhada para ver se não esqueci nada. Coloco a mochila nas costas. A mãe chegou, hoje vou com ela para casa. Entro no carro. Penso: vou chegar, tomar banho, organizar minhas coisas, jantar, falar no telefone, terminar a conversa mais cedo que ontem, durmir mais cedo que ontem. Volto pra onde eu estava. A mãe fala, não entendi nada. Pergunto: o que? Ela repete. Eu respondo.

Chegamos em casa. Deixo a mochila no quarto, tiro os sapatos. Sento na cama. Viajo. Vou longe sem sair do lugar. Volto para onde eu esrava: meu quarto. Bate a preguiça. Bocejo. Lembro que tenho, ainda, bastante coisa pra fazer. Levanto da cama, vou pra sala. Sento no sofá. Mas ainda tem banho, janta, telefone…

Levanto do sofá. Vou pro banho. Sono, quase sonho acordada por causa do cansaço. Lembro que estou no banho. Fecho o registro. Pronto! Pijama, preguiça. Vou pra cozinha. O que tem de bom? Parece que estou procurando agulha no palheiro. Encontro. Improviso. Assim tá bom. Sento. Como. Bebo café com leite. Termino. Vou pro telefone. Converso, converso. Sorte minha em ter alguém assim pra me fazer rir. Já está tarde, temos que acordar cedo amanhã. A gente se despede. Eu bocejo. E outra vez. Que sono! Vou pro quarto. Boa noite, mãe! Faço minha prece. Deito. Sonho, sonho, sonho…

Desperta o relógio: acordo: estou atrasada. Corro. Coloco roupa. Corro outra vez. Toma café. Coloco os sapatos e penso em hoje, dormir muito mais cedo que ontem. O tempo não foi suficiente pra descansar.

Chega no trabalho. Esqueci o celular em casa.

E daí?

Por que o ser humano está mais mecânico que humano?

Heloisa Rech
Enviado por Heloisa Rech em 09/09/2008
Código do texto: T1168928
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.