UNS OLHOS

Rua “Ariostato Duarte”, indicava a placa da esquina.

— Ulalá! exclamei.

A surpresa assaz agradável fez-me parar. Fiquei um instante admirando aquela placa, quase embevecido. À leitura daquele nome, vinham-me à mente os velhos e bons tempos de menino. Mas a surpresa foi agradável não em função dos velhos tempos, e, sim, em razão da homenagem. Normalmente, as que se prestam hoje são dirigidas aos figurões do mundo político — de preferência, aos vivos, pensei. Por isso, a surpresa se deveu a dois fatos: que o Ariostato não era do “mundo político” e que não era “figurão”. Os mentores da homenagem estavam, pois, de parabéns.

Nos tempos de menino, por volta de 1961, deixei a caixa de engraxate para cuidar de outros brilhos: os da prefeitura, da cidade em que vivia “seo” Ariostato. Ela fora recentemente transferida para um prédio ao lado, maior e devidamente reformado para mais bem a abrigar. Deram-lhe um piso bom, todo de madeira, tábuas compridas. No amplo salão retangular, de um retangular muito proporcional, que mais se acentuava pela igual proporcionalidade da largura e comprimento das tábuas, aquele piso ficava especialmente bonito.

A madeira clara forrava o chão. Sobre ela, em formato de um “L” maiúsculo, a que se invertera o lado mais curto, instalou-se um balcão de fórmica bem clarinha. No lado de dentro, distribuíram-se as escrivaninhas, nas quais os barnabés — e a história ainda não havia mandado arquivar nas prateleiras do tempo essa palavra, que significava servidor público de pequena categoria —, os barnabés, cortesmente, atendiam aos munícipes. Ali, tudo era harmonioso. Ver fazia gosto.

O Cipriano e eu éramos quem cuidava dos brilhos: do chão, dos balcões e das mesinhas todas. Em dias quentes, suávamos grosso quando, movido por nossos braços, o escovão corria solto sobre o piso: primeiro fazendo a esponja de aço, sobre a qual era colocado, comer vorazmente a cera velha e a sujeira, que, nele, deixavam sapatos, alpercatas, chinelos. Depois, uma varrição caprichada. Vez em quando, cera incolor; e, novamente, o escovão, por sobre uma flanela. Que brilho!

Isso era feito bem de manhãzinha, antes que a prefeitura se abrisse para o público. E tudo já estava devidamente espanado quando os barnabés começavam a entrar. Um dos primeiros era o “seo” Ariostato. Homem de porte médio, mais para alto; magro. Cotidianamente, de paletó com calças cinzas ou marrons e camisa branca. Mas não eram roupas finas, porque fazia trabalhos de rua: fiscalizava obras, cuidava da qualidade dos serviços que a prefeitura prestava na conservação da cidade de um modo geral etc. Também por isso, usava chapéu, de feltro, de abas médias, meio quebradas por sobre os olhos, o que escondia um pouco os óculos de lentes grossas e armação de osso. Osso de tartaruga, diziam.

“Seo” Ariostato era branco, mas a lide ao ar livre lhe dava mais consistência na cor. Nas mãos, tinha sempre uma pasta de couro, preta, sem bem me lembro. À época, já era longevo. Homem simples, humilde, sapiente. Em sua voz cansada havia bons falares, bons modos, muito respeito. Onde se vê? Uma espécie de engenheiro, ele era. Respeitado, por respeitável que era. “— Bom dia menino! Como vai? Opa! Você já limpou tudo, e eu? tô aqui, sujando. . .”

Mas não estava não. Era apenas um transeunte em lugar a que se havia limpo. Sua fala, seu jeito... tudo era um modo de dizer que via que a gente trabalhava. Era como se nos desse parabéns, por aquilo que era de nossa obrigação.

Tanta educação! tanto respeito e carinho nos modos do velho.

Na placa, eu via os olhos dele: escuros e miudinhos, como quando, parecia, fazia esforço para enxergar. E, nos olhos, um intenso brilho de paz! Engrenei e saí, devagarinho...

(Escrita em Guararapes, em dez. 2004)

José Izidro Manoel

izidro.jim@hotmail.com