ESTRELAS OUVINTES

Tarde de sol ardente, umidade rasteira, garganta seca. Não sou muito de bares, mas estou em frente a um. Mesas vazias reforçam minha vontade de entrar. Sento-me e peço um suco bem geladinho. Que delícia! Sorvo pequenos goles para melhor sentir o sabor de graviola. A tranqüilidade do local chama minhas reflexões existenciais...

Passei de setenta. Não seria um grande feito, sem esta saúde de ferro, provavelmente a fonte de minha inusitada paixão pela liberdade de ser. Tomo mais um gole e folheio o livro adquirido, após horas de peregrinação. Ótimo! Será mais uma luz na penumbra de minha senil ousadia -interpretar regras sob uma ótica incomum...

Não me reflito idosa, porém...oh! Amados frutos do meu ventre, por que tantos cuidados e temores? Sinto-me jovem, esqueleto flexível, atividades a pleno vapor e uma cabeça fervilhando de idéias. Quão espantados ficariam vocês, se descortinassem meu interior tão repleto de projetos!

Tanta coisa a fazer, a dizer - tão poucos a escutar! E este espaço restrito, com jeito de escanteio...Exclui-se de um lado, agrupa-se de outro. E não é preconceito? Ah!... mas existem gloriosas conquistas. Os felizardos da melhor idade não entram em filas, pagam meio ingresso, são beneficiados por pacotes turísticos, programas específicos, etc, etc...

Perdoem-me os encantados, os conformados - vejo com outros olhos; mais profundos e penetrantes. Eis meu questionamento. Aprendi, desde cedo, a identificar como velho, (hoje, idoso) alguém alquebrado, incapacitado à atividades, cujos cabelos brancos e ralos, por si sós já imprimiam respeito, sabedoria de vida e cuidados especiais.

Os tempos são outros. A longevidade tomou corpo. A tecnologia ultrapassou limites. Tabus cranianos caem por terra. Bisturis e cânulas fazem milagres...e, eu aqui, pressionada pela abrangência i-d-o-s-a, algemada por uma aposentadoria sem oportunidades, porque não apadrinhada...

- Viaje, vá conhecer o mundo! Não precisa enfrentar fila para passaporte. Até parece refrão! Não adianta retrucar; ninguém me escuta. Ora, já faço muitas viagens ao meu mundo interior. Se com tantos mergulhos no meu eu, ainda tenho reticências, por que tomar empréstimo, deslocar-me à embaixadas, conhecer outras culturas – se ainda desconheço os meus espaços? Eu não!!!

As horas correm e tomo meu último gole, já tão quente quanto meu pensar. Fico ali a olhar o copo vazio, alisando suas bordas, na vã esperança de que me ouça e entenda.

O garçon se aproxima complacente. Senhora, deseja mais alguma coisa? Agradeço-lhe e quando menciono levantar, ele pergunta se posso lhe dar licença para fazer um comentário. Respondo-lhe que fique à vontade. Dona, não é falta de respeito não, mas eu fiquei olhando para o jeito da senhora e, como tem uma cara boa, resolvi lhe contar uma coisa. Olhe Dona, conversar sozinha é dose! Eu já fiz muito disto, mas descobri um jeito bom. Só conto meus pensamentos para as estrelas. Desabafo tudo e elas ficam caladinhas, só me olhando com seus olhos brilhantes. Sabe? Elas me escutam muito bem! Experimente e depois me conte. Dei-lhe uma boa gorjeta e saí satisfeita.

Concluí que o caminho do conhecimento, nem sempre nos apresenta a solução ideal. Aquele franzino ser, de fala mansa, aparência humilde, talvez até sem o privilégio do esclarecimento, já havia encontrado os ouvidos que busco em certos momentos - sem apartes, sem réplicas. Apenas e tão somente para ouvir os ecos de minh’alma...

Ercy Fortes
Enviado por Ercy Fortes em 14/09/2008
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