A Trindade

Moram em mim três mulheres. Na verdade, duas mulheres e uma criança. Uma das mulheres apresenta-se como idosa. Digo apresenta-se porque não o é. Na verdade, é uma sacerdotisa, jovem, nascida e educada na Ilha Mágica, escolheu renunciar a juventude para obter conhecimento, para obter sabedoria. Ela optou por envelhecer décadas em um único dia; o dia do Rito, da passagem. Assim, investida de saberes mágicos, conhece o funcionamento da natureza, os poderes das plantas, saber ler o céu e as estrelas como quem lê a palma de uma mão. Abriu mão das paixões, da ousadia juvenil, do arrebatamento e dos impulsos para poder falar com doçura, aconselhar, respeitar o tempo e não apressar as sementes. Aprendeu que tudo acontece quando é preciso e não quando se deseja. Tem cabelos grisalhos, rugas, fala macia, porém enérgica, mas, no olhar demonstra toda a determinação e magnetismo que o Rito não conseguiu disfarçar. Jamais se exalta, porque acredita que não vale a pena; sente os ciclos, o movimento da terra e confia nisso mais do que em si própria. Ela tem cheiro de especiarias. Simples e forte.

A segunda mulher é uma jovem. Tem cerca de 25 anos, cabelos desarranjados, tempestade nos olhos, peito arfante e nos lábios quase sempre um sorriso de desdém ou de desafio. É uma guerreira. Carrega consigo uma espada sob o manto e não teme em utilizá-la. Mas, sua principal arma é seu humor corrosivo, suas argumentações racionais e suas observações diretas e tantas vezes cruéis. Admira os céus e os astros porque possuem uma tranqüilidade que ela não traz em si. É resoluta, mas impulsiva. Jogadora. Gosta de admirar a reação daquilo que diz e faz. Provocadora. Não tem paciência para ensinar ou ouvir. Peregrina constantemente e não acredita em afetos que durem mais do que dias. Não acredita em afetos existindo com liberdade. Seduz, usufrui e descarta. Não quer responsabilidades ou preocupações. Não quer nada que possa ocupar espaço demais no seu peito e fazê-lo pesar. Tem a descrença da juventude. Traz em si o odor da ventania, de mar em ressaca.

A terceira habitante e a mais fácil de encontrar (não porque goste de aparecer, mas porque as outras estão sempre ocupadas demais ou ausentes demais para se mostrarem) é uma menina. Ela tem apenas 5 anos e traz toda a ternura e a esperança da infância. Acredita que o mundo está mergulhado em magia e admira o firmamento porque se sente como num navio vendo outras embarcações ondulando na extensão do mar. Admira as estrelas porque acha surpreendente que brilhos tão lindos possam ficar suspensos no céu sem nenhuma linha. Ela tem um sorriso alegre e espontâneo, mas, devido ao fato de também ser medrosa e assustadiça, ri pouco. Corre pelos campos, brinca nos rios, adora animais e sofre todas as dores do mundo, chora por todas as dores do mundo, daria sua curta vida de 5 anos mil vezes se soubesse que seu sangue lavaria toda a angústia e tristeza existentes. Ela crê e ainda confia. Odeia gritos e foge toda vez que pressente brigas. Canta músicas estranhas e conversa sozinha porque se acha diferente, enlouquecida. Adora a idéia de voar (sem asas, sem máquinas), de sentir-se arrebatada do chão pelo vento; e não quer crescer. Não acredita em amores humanos, mas se ajoelha todos os dias no altar da Amizade. Conversa, diariamente, com um Jesus Menino, riem juntos e brincam juntos. Ela tem cheiro de baunilha, de vento nos trigais.

As três habitantes não dividem o espaço do meu corpo de forma igualitária; a menina fica quase sempre só, a “velha” aparece sempre que solicitada para aplicar seus saberes e seus talentos; a guerreira está quase sempre longe, em lutas distantes, porém, quando chega, traz junto tempestade e furor, resolve o que é preciso, atropela tudo em seu caminho, não mede conseqüências e se vai tão rápido quanto veio. Talvez por isso a menina prefere evitar chamá-la (só quando é estritamente necessário), ela prefere os conselhos da sacerdotisa, a paz morna que ela exala. E, como toda criança travessa e esperta, sabe imitá-las muito bem, sabe passar-se tanto por uma quanto pela outra e enganar quem está ao redor. Não o faz como brincadeira, mas como defesa quando se sabe só.

Preenchem-me todos os poros e sobrevivem apenas porque convivem. Estão todas em mim. Sou todas; sou três.

Mirra
Enviado por Mirra em 04/03/2006
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