Contando a vida em letras

O calendário só me diz que faz mais de um mês que não escrevo uma linha. Isso pra mim, e pra maioria dos escritores que conheço, é um grande problema. Pois me alimento de letras que leio e respiro das que escrevo. Como todos os escritores que sofrem dessa incapacidade de viver sem escrever, também tenho uma espécie de armazenamento de vida que sugamos infinitamente do que esta escrito. Mas essa reserva é efêmera, e um mês significa muito mais do que a minha suporta.

Essa falta de escrever me faz pensar no medo. Medo maldito que me tira a leveza, a insustentável leveza, que também não me adianta de nada conservar. É por causa dela que me emudecem as linhas e me fogem as frases. Medo do medo que me brota quando as páginas em branco dessa maldita tela me assustam. Medo de não ter como respirar quando o tubo de ar acabar e eu não conseguir achar a superfície. Afogar-me no mar de sujeira que é esse nosso mundo sem imaginação e cru. Ou pior, me tornar um náufrago em uma ilha deserta de letras, palavras, idéias.

Medo de ser como você e não ter mais nada para acreditar a não ser em um trabalho sem sentido, uma vida sem paixão e um deus que não te ama e te castigará a qualquer desvio de conduta. Acreditar num deus que te testará com a impiedade do carrasco que sacrifica o homem que matou sua filhinha inocente. Medo de ser o carrasco e acreditar que estou certo porque um deus me ilumina e que por ele faço justiça. Medo de perder minhas letras, minha alma e depois disso achar que tenho uma alma justa e que posso decidir quem deve seguir livre ou em cárcere, quem deve ser o escolhido e quem deve mudar o jeito de ser porque não combina comigo e com o mundo que eu aceito, que esse bondoso deus carrasco criou.

Esse medo me faz querer incontáveis doses de drogas teleguiadas por ondas de rádio e TV. Drogas que enobrecem a alma de todos os meus irmãos que estão sobre a égide do normal, que estão protegidos pela sombra que só os vencedores e os que servem vencedores podem desfrutar. Medo que me empurra para a calma e tranqüilidade das ruas claras e seguras, para o fiel comportamento do cristão. Medo que me abre os instintos do lucro, que me lembra que a velhice deve ser confortável, que me lembra que preciso de um teto baixo acima de mim e uma cama macia abaixo.

Medo que me impede gritar o que eu quero, que me impede recusar o que não quero, medo que me deixa mais uma triste alegre alma que vê o último programa por que não tem mais nada a fazer, que usa aquela roupa porque agora é bonita e que desvia dos que usam aquela, porque agora é feia. O medo que me faz ser perfeito. O medo que faz os náufragos dessa imensa ilha deserta sobreviver.