DE GERAÇÃO PARA GERAÇÃO
 
Numa dessas comunidades do interior, situada num rincão bem distante, um pouco próxima à comunidade de Cafundós do Judas, morava um camponês em companhia da sua mulher e dos seus vinte filhos, todos instalados precariamente numa simples casa de taipa.
 
Nos aposentos dessa moradia não havia uma infraestrutura capaz de acomodar adequadamente toda a família, por isso uma boa parte da garotada dormia em jiraus, que é uma armação feita de madeira em forma de estrado que, nas famílias com um número elevado de filhos, faz a função de cama. 

Era ali, naquele mezanino improvisado, onde dormiam os garotos Abdias, Baltazar, Carlinhos, Daniel, Edinho, Francisco, Gustavo, Helinho, Ignácio, Joãozinho e Luizinho. 
As meninas dormiam em estrados semelhantes aos dos meninos os quais eram forrados com esteiras feitas de palhas de junco, acomodados dentro de um quarto vizinho ao do casal.
Elas eram ao todo, nove garotas, a saber: Marianinha, Noêmia, Odília, Paulinha, Quitéria, Rosinha, Santinha e Tereza, que se amontoavam como podiam num espaço bem diminuto.
No quarto delas não havia portas e nem janelas, muito menos guarda-roupas para acomodar as suas vestimentas. As poucas peças de vestuário existentes eram guardadas em sacos de pano, sem a identificação dos verdadeiros donos e esses sacos tinham os nós como fechaduras. 

Era comum ver as meninas vestindo as peças de roupas umas das outras. A molecada, por sua vez, não podia fazer confusão com as peças femininas. Se por um descuido de um deles isso viesse a acontecer, a pressão por parte dos outros irmãos seria infernal. 
Ali imperava uma educação extremamente machista: homem só deveria vestir roupas eminentemente masculinas; as mulheres nem podiam pensar em usar calças compridas, nem as poucas camisas ou camisetas dos meninos. Se uma delas assim o fizesse, as outras a delatava para os pais, que se encarregavam de puni-la severamente. 
Durante muitos anos foi assim naquele ambiente, cheio de escassez de tudo, mas dotado de uma rigidez de comportamentos sem similar. Os meninos não chegavam nem perto das peças de roupa das meninas e vice-versa. O mais curioso era que cada menino tinha de lavar suas próprias roupas. As meninas também tinham de lavar suas peças de roupa e isso se tornava uma tarefa muito fácil para todas elas, principalmente devido à escassez de peças, da falta de água e de sabão. 
Desta forma, quem não tivesse tempo para lavar suas peças de roupa, não poderia usar a roupa limpa do outro. 

Os anos se passaram e obedecendo a uma rotina natural a garotada cresceu. Os pais dessa prole bem numerosa ficaram bem velhos, debilitados e doentes e depois de algum tempo morreram. Os garotos e as garotas mais experientes passaram a cuidar dos irmãos mais novos e a partir daquele momento aquela rigidez de hábitos de antanho passou a não precisar mais da inflexibilidade de comportamentos e atitudes antes utilizada naquele espaço diminuto conquistado à duras penas. 
Na verdade, seria mesmo imprescindível a existência de uma maior flexibilidade educacional familiar, bem como o surgimento de uma negociação constante entre as partes envolvidas. 

Com o passar dos anos os homens daquela célula comunitária passaram a lavar as roupas das suas mulheres e vice-versa; até vesti-las se necessário fosse, sem sofrerem nenhum tipo de censura. A distribuição das tarefas caseiras entre os membros daquela e de outras famílias passou a ser uma rotina natural. 
As pessoas e os ensinamentos recebidos durante todos esses anos naquela célula familiar formaram um grande cabedal e tomaram rumos diversos em prol da continuidade da vida nas comunidades das outras regiões. 
Vimos, portanto, que o tempo passa e junto com ele as gerações passam a agir conforme as necessidades de cada grupo social em particular, não obstante os ensinamentos anteriormente recebidos. Contudo, se não houver união e força de vontade entre as partes envolvidas para negociarem entre si eventuais quebras de paradigmas, a manutenção da rigidez de ensinamentos arcaicos entre pais e filhos, alimentados pela falta de educação e orientações básicas modernas, tenderá a prevalecer por muito tempo, mantendo em evidência apenas os conceitos e regras familiares de uma sociedade eminentemente retrógrada. 
 
Germano Correia da Silva
Enviado por Germano Correia da Silva em 04/10/2008
Reeditado em 11/01/2018
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