Itinerário

- Durmam, crianças.

Eu vibro. Os campos passando, espreitando o carro, estendendo-se ao longo do caminho... Eu queria chegar. Queria readaptar-me ao meu mundo de criança, às bonecas familiares, ao pátio povoado de árvores onde se escoavam as nossas tardes. No momento, parei. Melhor, pararam meus olhos, meu coração pula, como se... Procuro pensar, mas estou entregue ao sentir. Sempre acontece assim - êxtase - quando capto o belo em forma de paisagem. Quem disse que a imensidão verde, que vejo a cada passo, representa o belo? Mas, não quero saber. O sol se deita entre cores esmaecidas. O gado continua pastando, no meio da cor que vai fugindo. Eu ponho para fora:

- Olhem o sol!

Preciso extravasar. Ouço o psiu do pai, vejo seu rosto no espelho, querendo dizer que não faça barulho, a mãe fechou os olhos. Ricardo, a meu lado, também cochila. Seus pés, postos para cima, vêm tocar minha perna. Por que todo mundo terá dormido, e está perdendo o crepúsculo pintado de rosa? Não adianta dizerem (como várias vezes já me disseram) que a cada anoitecer o sol se põe. Hoje, sou eu a testemunha. É como se fizesse parte do cenário. Se pudesse esgueirar-me do carro, esse carro sonâmbulo que segue no mesmo andar, e entrasse no campo aberto... Divago. Sou um monte de impressões, de sentires confusos, de simbiose com a natureza, num viver do instante. Estou perdida em terra, longe de tudo que não seja sonhar.

Instante longo ou breve em que fico só. Os homens despovoaram meu mundo, vou diminuindo de tamanho, diminuindo, até diluir-me num cosmos grande demais para as minhas forças. Sou um ponto difuso no espaço iridescente.

Acordo. Procuro voltar. Olho para o espelho, o pai pisca. Eu cheguei. Integro-me na noite que já caiu, no vilarejo que vem a nosso encontro com luzes nítidas, a voz da mãe dizendo baixinho:

- Estamos chegando.

Busco o céu. "Cadê a lua?" Não tem lua, ou o meu horizonte visual não me permite descobri-la. Encontro um punhado de estrelas, luzindo fracamente. O carro reduz a velocidade, estamos na curva de entrada.

Béti Mecking
Enviado por Béti Mecking em 05/10/2008
Reeditado em 06/10/2008
Código do texto: T1213423
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