A guerra acabou em Angola

Durante a nossa guerra, penso que na nossa última guerra, perdemos dois primos por acidente de viação na estrada Benguela-Luanda. Lembro-me do quanto sofremos todos a morte destes jovens. A estupidez da morte. A vulgaridade do acontecido. Nada de espectacular... Bem diferente do que eles deveriam ter imaginado para a morte deles.

Eram jovens corajosos, daqueles que escapavam entre as balas, cabalhotavam e caíam de pé. A guerra estava tão presente no dia a dia que as histórias que contavam davam vontade de voltar para Angola. Só para rir, só para rirmos juntos. Mas o destino planeou outra coisa.

Primeiro um, o mais novo, perdeu a vida num acidente de carro. Todos procuramos outras explicações. Dizíamos que havia provas que tinha sido assassinado. Outros contavam os buracos de balas na carroceria do carro. Ele adorava aquele carro. Nada disso. Simplesmente teve um acidente e morreu... Morreu com 23 anos.

Depois o outro, rapaz de grande verbo e coração. Tocava viola, pintava e fazia o favor de ser amigo de toda a gente que conhecia. Até daqueles que não mereciam...

Morreu num acidente de carro. Nesse dia, andava a guerra lá para as matas, o mundo perdeu um cavalheiro, um poeta... e nós não perdemos a chance de tentar encontrar evidências do seu assassinato, fosse de que tipo fosse. Julgo que até aceitaríamos um assassinato por negligência, sem querer, mas algo à altura do nosso primo. Era um menino, sempre foi e sempre será. Tinha daquelas gargalhadas que prendem e comovem, que nos empurram para a alegria.

Comove-me falar de morte brutal como as que temos notícia. O anonimato a que todos estamos reservados vulgariza a morte. Sei lá se estes jovens que morrem nas ruas do Brasil, do Iraque ou Afeganistão prefeririam morrer num acidente de carro na estrada Benguela-Luanda, mas tenho a certeza que não imaginavam que fossem perder a vida assim, baleados, explodidos, massacrados, com um pedido de desculpas na lápide. Retiraram a bravura destes jovens com um erro. Jamais alguém poderá imaginar essa dor. Só morrendo.