Carta a Emília - O Feiticeiro

Emília, meu amor

Decidi contar-te toda a verdade sobre mim.

A verdade é que eu sou um poderoso feiticeiro com mais de mil anos. A minha origem é cósmica, por isso, estou sempre alheio ao Mundo que me rodeia. Vejo a vida como quem vê um teatro, onde todos são personagens e eu, meramente, espectador.

O nosso encontro não foi casual, foi intencional, calculado friamente, com detalhes que só um feiticeiro poderia conseguir.

Tenho poderes mágicos como, por exemplo, saber escolher um bom vinho, encontrar um belo poema num velho livro, fazer ouvir a música preferida, encontrar o ambiente perfeito para um beijo e, depois, com uma arte que só os feiticeiros conhecem, prender esse momento, fixá-lo no coração da vitima escolhida.

Sou um prisioneiro desta sina. Durante tantos anos roubei beijos, sentimentos, sonhos. Guardo tudo isto no porão da minha intimidade que é uma sala grande, quente. Nas paredes brancas estão expostos os meus troféus: Declarações de Amor, guardanapos de papel com poemas manuscritos, anéis, fotografias e até alguns livros com dedicatória. Nesta sala só eu entro, ninguém tem acesso, pois é aí que eu guardo a arca sagrada, uma mala velha com cadeado onde está a minha consciência. Ao fundo, junto a um original de Dali que eu imaginei perfeito, tenho um armário com gavetas. São gavetas pequenas, algumas com fundo falso, onde escondo as memórias mais dolorosas ou algum arrependimento mais intimo.

Numa das gavetas guardo as minhas armas mais poderosas:

O Elixir do Amor, frasco opaco, muito frágil que nunca acaba, por muito que eu use.

A Máquina de Voz: É um pequeno dispositivo muito rudimentar que uso quando quero trabalhar a voz de acordo com o objectivo a atingir.

Tenho ainda a Caixa da Imaginação: Esta é a mais perigosa. Foi-me dada por uma princesa indiana sobre a qual caiu grande maldição.

Também ela usou esta arma. Também ela sofreu por isso.

Com a imaginação eu atraio as minhas vitimas, primeiro mostrando distância e sinceridade, fazendo-as viajar por montes e montanhas, usando a Máquina do Tempo que meu pai me deu. Esta máquina só funciona com pessoas sinceras, pessoas de bons sentimentos.

Quando as vitimas estão dominadas, sem saberem, engano-as com a firmeza da voz, o timbre correcto, a escolha das palavras, a construção das frases, o olhar treinado a fitar a alma, a descobrir fraquezas.

Contigo foi diferente, caí na minha própria estratégia, fui vitima do meu próprio esquema, derrotei-me e venci ao mesmo tempo.

A minha única salvação foi a tua bondade em corresponderes ao amor que semeei em nós.

O grande e poderoso feiticeiro ficou sem armas e permitiu que entrasses na Sala da Intimidade, vasculhasses as suas gavetas. Mas tu não quiseste ver a arca sagrada da minha consciência só porque me amas.

No fim, brincaste com as minhas recordações e depois deixaste-as no chão, todas misturadas, sem importância.

Agarraste o meu amor e dançaste pela sala, a rir, a dizer-me coisas engraçadas ao ouvido.

Quando sonho que saíste da minha sala de fantasia fica muito silêncio e penso que é solidão que sinto, mas é saudade, saudade de momentos que ainda não vivemos, de emoções que ainda não sentimos.

Amo-te Emília,

Amo-te Emília,