MEMÓRIAS DE UMA DESMEMORIADA - UMA CRÔNICA TRAGICÔMICA
Recebi de um amigo cronista o seguinte recado: “Deve ser estranha a vida sem memória... Um dia, se você quiser, me conte como funciona... Fico curioso...” Pois vou responder a ele nesta crônica.
Isso da memória falhar já vinha acontecendo há muito tempo. Eu sei por que, mas não gosto de contar. Contar pra quê se ninguém acredita mesmo? Quando eu falo, todo o mundo quer me consolar e diz: “Eu também estou assim... não é da idade não... acontece com todo o mundo...” E eu fico puta da vida porque sei quantas vezes eu boto açúcar na xícara e despejo o café no açucareiro...
Eu estava bem prevenida (palavra de médico...) do que poderia me acontecer. Mas para fugir de dores eu topei tomar aquele montão de remédio. Pôxa, foi um alívio na dor e, enquanto isso, os neurônios sem-vergonha, sem nenhuma consideração por mim, foram se apagando. Quantos se apagaram? Ora, não sei. Não contei. E não conseguiria mesmo pois, quando dei por mim, já nem contar eu sabia. Um dia me enfezei e, morrendo que estava de medo de perder a cabeça, parei com remédios e resolvi assumir a dor. Por quinze dias foi uma beleza, as dores não eram fortes como antigamente. Mas ainda era efeito dos remédios e a dor foi aumentando, aumentando, eu gemendo, gemendo, e... que horror!, me acostumei com a dor. O meu incentivo era sempre pensar: pelo menos preservo a minha cabeça. E eu mal sabia que os neurônios continuavam conspirando contra mim. Quando dei fé, os bichinhos já tinham armado toda a confusão. E, o que é pior, dentro de minha preciosa cabecinha. Isso é de chorar, mas não sei por que motivo, eu ri adoidada quando descobri. Deve ser porque os neurônios que restaram ficaram retardados.
Aconteceu o esperado: a memória pifou de vez. A cada dia eu fazia mais besteiras. E ria das besteiras, isso é o que mais me enfezava. Mas tinha que rir, era tudo tão engraçado!!! Eu adorava cozinhar e tive que parar de tantas panelas que queimei. Botava ovos pra cozinhar, aí só lembrava quando ouvia estalos, corria pra ver o que estava acontecendo e encontrava os ovos dançando dentro da panela, cujo fundo já estava queimando há muito tempo. Encontrei uma solução: punha os ovos para cozinhar, sentava ali esperando para evitar o perigo. Daí um tempo estranhava que a água nem levantara fervura. Olhava e sacava: eu não tinha acendido o fogo... E isso era fichinha no meio do turbilhão que era - e é ainda - meu dia. E aí, eu chorava. Depois lembrava e ria... Eu rio, mas quando conto e a pessoa ri, fico uma fera...
O sinal mais evidente do falecimento de meus neurônios aconteceu quando eu não esperava. Eu falava ao telefone com o suporte do meu provedor. O interlocutor perguntou se eu tinha duas linhas. Disse não e ele pediu que esperasse sem desligar. De repente, olhei para a base do telefone sem fio e ele não estava ali. Levantei-me e corri a casa toda procurando por ele. No quarto, tirei toda a roupa da cama achando que ele estava perdido como perco sempre o controle remoto. Mas o telefone não estava mesmo. Então me sentei, olhei novamente para a base vazia e pensei, resignada: “Quando acabar aqui eu vou ter que procurar esse telefone.” Ao decidir isso, achei! O telefone estava na minha mão, no meu ouvido! (Não ria, leitor, que eu viro fera!)
Vou contar algumas das coisas que têm acontecido depois disso.
Um amigo telefona e diz que vem me ver às três da tarde. Quando ele chega eu fico feliz e agradeço pela surpresa da visita...
Há poucos dias eu me deitei para repousar e adormeci. Ao acordar olhei o relógio: 6:15h. Olhei para a janela: estava meio cinza a cor do tempo. Levantei-me e me assustei ao pensar que dormira com a casa toda aberta. Senti a confusão e tive que ligar para um amigo e perguntar se eram 6:15 da manhã ou da tarde. Era tarde, ele me informou, morrendo de rir, o desalmado...
Eu faço listinha das coisas de que preciso me lembrar. Depois não encontro mais a listinha e fico aborrecida. Isso quando não ponho a culpa na pobre da moça que me ajuda na limpeza da casa e que nem está aqui.
Vou à cozinha pegar algo na geladeira. Abro a porta da dita e fico olhando... olhando... mas o que foi que fui pegar?
Leio um texto e, quando termino, já esqueci do título e até do assunto. Mas eu li e leio, pois sou teimosa.
De ver filme já desisti. Perco o fio da história e nem adianta procurar. Esqueço os nomes dos personagens e confundo suas fisionomias. E o que mais me enfeza é quando me contam um filme. Eu me desligo completamente, fico pensando em outras coisas e, de repente, me assusto quando o interlocutor me interpela: “que você acha desse filme?” A resposta já está carimbada: “é legal!”, sempre com um sorriso amarelo brilhando na cara...
Uma das piores coisas é quando falo com alguém, tanto pessoalmente como por telefone, mesmo que seja muito conhecido, e o nome dele não vem à minha mente. Eu fico embaraça, resmungando: nham, nham, nham... até que pergunto: como é mesmo o seu nome? Ai que vergonha!... Isso acontece até com minha filha, mas ela tem uma prática danada: quando começo o resmungo ela já diz: Maria Luíza, mamãe!
E ainda tem um final mais trágico: eu tenho ausências. Saio de mim sem saber quando saio nem quando volto. Não sei o que fazer, mas sei bem o que pode acontecer: meu médico disse que de uma ausência eu posso não voltar... Esse seria o pedaço mais trágico...
Pois é isso. Eu poderia contar muito mais pra vocês e tornar esta crônica mais engraçada e/ou interessante. Mas, quê fazer... eu não me lembro de nada!!!
Uma última observação: se algum de vocês estiver por perto quando eu exclamar: “Quê saco! Merda, merda, merda!”, saia correndo para não se transformar numa vítima fatal...